Estava
eu onde nunca quis estar – e onde nunca estarei – outros também ali estavam
como inquilinos solúveis com o tempo. Todos eles liam com uma saudade incontida
e devoravam as folhas de um tal Marcel Proust: À la recherche du temps perdu”. Da minha parte, prisioneiro entre
quatro tábuas caiadas de alvaiade ‘pálida e fria’, ouvi alguém abrir o LIVRO
deste domingo e decifrar aquele dilema de duas irmãs, Marta e Maria. A primeira,
assoberbada de trabalho, turbinada na acção febril da casa; a outra, em
silêncio envolvente, escutava as palavras do doce Nazareno. E memorizei a fala apaziguadora do Mestre entre a dissensão
doméstica das duas irmãs: ”Marta, não te aflijas tanto, a tua irmã Maria
escolheu a melhor pate” do dia e da vida. (Lc.
10, 42).
Foi
então que me dei conta da discrepância entre mim e os partilhantes vicinais do
mesmo apartamento: Enquanto eles suspiravam pelo tempo perdido, eu só pensava
em voltar ao mundo em busca do silêncio perdido.
Do
turbilhão tumultuoso dos dias, nem sombra de memória. Nem das trombetas das
vitórias, nem do troar dos canhões portadores das derrotas. Sumido na caverna
de Platão, atirei para fora dela a barafunda de outrora, as pulsões do
instante, os ventos cruzados, suicidas, em que eu próprio fui tantas vezes protagonista
– como outras tantas réu inconformado. Só me inundava a saudade dos silêncios
perdidos.
E
voltei ao mundo. A mesma agitação sem rumo, a mesma entropia atómica, generalizada,
as mesmas fugas: fugas da realidade exógena, fugas do tronco endógeno,
desvarios de fora, anomalias de dentro. Descobri que o homem-mulher é um ser
comido, triturado pela buldózer do tempo. Comido pelos poderosos, assediado
pelos media, esventrado pelos políticos e pelos dogmas ditos religiosos e seus
corifeus. Somos o joguete de quem nunca sonhámos ser. E nem damos por isso!
Enfim, escravos dos tempos perdidos, do passado, do presente e dos tempos a perder - os tempos
futuros.
“Façam
barulho” – e nós, os pacóvios simiescos, aplaudimos!
Neste
ribombo infrene em que estamos forçosamente jogados, o que mais falta faz é
voltar à liberdade dos silêncios perdidos. E recuperados. Para serem
reprodutivos, multiplicados, seja lá onde for.
Silêncio
permutado em flores e frutos da terra, com o do homem camponês, lavrando e
cavando na paz operante da montanha, de
cuja sorte bem invejava o poeta Virgílio, nas suas inspiradas ‘Éclogas’: Oh Fortunate Senex!
Silêncio
vigilante como o do homem do leme, entre mar e céu, perscrutando os horizontes e deles recebendo o
astrolábio navegante.
Silêncio
criador, como o da Gruta de Macau, onde Camões completou a Magna Epopeia do
Povo Lusíada.
E
silêncio catártico, ascensional dos místicos, como o de João da Cruz e Teresa
de Ávila.
Como
o silêncio purificador das chamas que tornarão meu corpo em volutas de incenso-cinza
naquele voo directo, para não mais voltar às quatro tábuas caiadas da cor alvaiade
‘pálida e fria’.
Enquanto
é tempo, ganhar os tempos do silêncio perdido! No alto da serra ou nas
profundezas do mar imaginário. Ou até mesmo na vozearia anárquica da grande
multidão.
17.Jul.22
Martins Júnior
Uma Carta Magna para reflexão e conduta dos nossos tempos. Excelente.
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