O SENHOR “VENDEIRO” DO TEMPLO ?
E SUA MÃE FEIRANTE DE ARRAIAIS ?
Poderá alguém questionar: “por que
razão, este homem se ocupa de um assunto tão comezinho e inofensivo como as
procissões de velas, quando há tanta coisa que ele sabe dizer?”. E eu esclareço,
começando por observar que é em certos gestos, aparentemente banais,
inconscientes até, que se reflecte toda uma sintomatologia definidora do estado
de saúde física, mental, cultural, quer de um indivíduo quer de um povo. Digam-no
os etnólogos, os antropólogos, os psicanalistas, os médicos em geral, quando
começavam a consulta ao paciente com esta pergunta aparentemente ridícula:”diga
trinta-e-três”.
Não será preciso grande esforço de
pesquisa para “ver-se” a olho nú que os velórios processionais identificam uma
das componentes estruturais da condição humana: a sua contingência, a sua
fragilidade, a que pode juntar-se o medo perante o absoluto, a expectativa
perante o mistério, culminando tantas vezes na ignorância e na superstição que
levam o “crente” a acender uma vela tanto no altar da Virgem como na banca da
bruxa.
Por isso é que me interessa
sobremaneira a análise científica desta variante devocional, a radiografia, a
sua ressonância multiforme, porque através dela ficamos surpreendidos com
equívocos e contradições ou, pelo menos,
coloca-nos perante a dúvida cartesiana, enquanto método, sobre se aquilo
que fazemos de boa-fé não será antes um acto de ofensa a Deus ou se o gesto
ostensivo de participação no cortejo não esconderá uma ponta de egoísmo e, pior, de
exibicionismo, tudo à conta de encendrada devoção.
Retomo, pois, os quesitos da reflexão
anterior: Pagar: o quê e a quem?” Pagar: “como?”
Se se trata de um pagamento estamos
perante dois intervenientes, dois contraentes:
um credor e um devedor. Quem é o credor, já o sabemos: o Senhor tal, o Santo x, a Santa y,
reconduzindo-se todos ao único credor, Deus. O devedor é o autor do
contrato-promessa: prometo-te isto, se me venderes aquilo: uma viagem segura,
saúde, sorte no jogo ou no amor, sucesso, seja o que for. Estamos, portanto,
perante um puro contrato de compra e venda. E tão evidente é esta relação
comercial que, se tivéssemos a certeza de outro “consultório” ou outro vidente que
nos fornecessem infalivelmente o pretendido desejo, era a esse lugar e a essa
agência que nos dirigiríamos sem demora, tal a aflição do momento.
Só que, neste caso, o credor é
incorpóreo, imaterial, espiritual e, por isso, não há maneira de passar-lhe
para as mãos o preço da mercadoria obtida; também não tem casa de câmbios nem
bancos, nem sequer tem hipótese de aceitar cheques. Acresce a esta questão, um
factor determinante, iniludível, imperativo. Este Credor mandou avisar e, na
figura de JCristo, decretou peremptoriamente: “Não leveis bolsa nem alforge…não
aceiteis moeda, “gratis acceptistis, gratis
date” (recebestes de graça, dai de graça) exigiu Ele aos apóstolos, seus
amigos e seguidores. E mais avisou: “O bem que fizer a tua mão direita, que o
não saiba a tua mão esquerda” e disso deu a prova quando, após restaurar a
vista ao cego de nascença, despediu-se com esta recado: “ Agora vai, mas não
digas nada a ninguém”.
Metendo-me (o que nunca fiz) na pele e
no traje de milhares de romeiros promitentes, os de boa-fé, pergunto-me: Não
estarei a tratar Deus como um “vendeiro”
do Templo? Não estarei a tratar a Senhora Sua Mãe como uma feirante de
arraiais? Dou se me deres …pega lá, dá
cá! E se o grande Credor, o benemérito Senhor Supremo a quem atribuímos o
suposto “milagre”, se Ele pudesse falar-me: “Pensas que estou à espera disso?
Julgas que foi por causa dessa verba ou dessa vela ou dessa cabeça ou dessa
perna de cera que te deitei a mão?”
Com todo o respeito pela subjectividade
da fé de cada peregrino, posso garantir que isto não fica por aqui. Há muito a
questionar e a descobrir no tradicional cortejo das velas. Nos próximos dias
ímpares. Porque não é só de dinheiro que se trata: é de educação das
mentalidades.
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