quarta-feira, 15 de outubro de 2014

O SENHOR “VENDEIRO” DO TEMPLO ? E SUA MÃE FEIRANTE DE ARRAIAIS ?

O SENHOR “VENDEIRO” DO TEMPLO ?
E SUA MÃE FEIRANTE DE ARRAIAIS ?



         Poderá alguém questionar: “por que razão, este homem se ocupa de um assunto tão comezinho e inofensivo como as procissões de velas, quando há tanta coisa que ele sabe dizer?”. E eu esclareço, começando por observar que é em certos gestos, aparentemente banais, inconscientes até, que se reflecte toda uma sintomatologia definidora do estado de saúde física, mental, cultural, quer de um indivíduo quer de um povo. Digam-no os etnólogos, os antropólogos, os psicanalistas, os médicos em geral, quando começavam a consulta ao paciente com esta pergunta aparentemente ridícula:”diga trinta-e-três”.
         Não será preciso grande esforço de pesquisa para “ver-se” a olho nú que os velórios processionais identificam uma das componentes estruturais da condição humana: a sua contingência, a sua fragilidade, a que pode juntar-se o medo perante o absoluto, a expectativa perante o mistério, culminando tantas vezes na ignorância e na superstição que levam o “crente” a acender uma vela tanto no altar da Virgem como na banca da bruxa.
         Por isso é que me interessa sobremaneira a análise científica desta variante devocional, a radiografia, a sua ressonância multiforme, porque através dela ficamos surpreendidos com equívocos e contradições ou, pelo menos,  coloca-nos perante a dúvida cartesiana, enquanto método, sobre se aquilo que fazemos de boa-fé não será antes um acto de ofensa a Deus ou se o gesto ostensivo de participação no cortejo não esconderá  uma ponta de egoísmo e, pior, de exibicionismo, tudo à conta de encendrada devoção.
         Retomo, pois, os quesitos da reflexão anterior: Pagar: o quê e a quem?” Pagar: “como?”
         Se se trata de um pagamento estamos perante dois intervenientes, dois  contraentes: um credor e um devedor. Quem é o credor, já o sabemos:  o Senhor tal, o Santo x, a Santa y, reconduzindo-se todos ao único credor, Deus. O devedor é o autor do contrato-promessa: prometo-te isto, se me venderes aquilo: uma viagem segura, saúde, sorte no jogo ou no amor, sucesso, seja o que for. Estamos, portanto, perante um puro contrato de compra e venda. E tão evidente é esta relação comercial que, se tivéssemos a certeza de outro “consultório” ou outro vidente que nos fornecessem infalivelmente o pretendido desejo, era a esse lugar e a essa agência que nos dirigiríamos sem demora, tal a aflição do momento.
         Só que, neste caso, o credor é incorpóreo, imaterial, espiritual e, por isso, não há maneira de passar-lhe para as mãos o preço da mercadoria obtida; também não tem casa de câmbios nem bancos, nem sequer tem hipótese de aceitar cheques. Acresce a esta questão, um factor determinante, iniludível, imperativo. Este Credor mandou avisar e, na figura de JCristo, decretou peremptoriamente: “Não leveis bolsa nem alforge…não aceiteis moeda, “gratis acceptistis, gratis date” (recebestes de graça, dai de graça) exigiu Ele aos apóstolos, seus amigos e seguidores. E mais avisou: “O bem que fizer a tua mão direita, que o não saiba a tua mão esquerda” e disso deu a prova quando, após restaurar a vista ao cego de nascença, despediu-se com esta recado: “ Agora vai, mas não digas nada a ninguém”.
         Metendo-me (o que nunca fiz) na pele e no traje de milhares de romeiros promitentes, os de boa-fé, pergunto-me: Não estarei a tratar Deus como um  “vendeiro” do Templo? Não estarei a tratar a Senhora Sua Mãe como uma feirante de arraiais?  Dou se me deres …pega lá, dá cá! E se o grande Credor, o benemérito Senhor Supremo a quem atribuímos o suposto “milagre”, se Ele pudesse falar-me: “Pensas que estou à espera disso? Julgas que foi por causa dessa verba ou dessa vela ou dessa cabeça ou dessa perna de cera que te deitei a mão?”

         Com todo o respeito pela subjectividade da fé de cada peregrino, posso garantir que isto não fica por aqui. Há muito a questionar e a descobrir no tradicional cortejo das velas. Nos próximos dias ímpares. Porque não é só de dinheiro que se trata: é de educação das mentalidades.

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