Foi um fim de semana
vistoso, multicolor, tintas garridas, onde se misturaram o Dia dos Namorados e os
intermináveis carnavais por todo o mundo. Curiosa é a coincidência de um ritual
religioso, precisamente da Igreja Católica
na Basílica do Vaticano que concitou as atenções de todo o planeta: a
entronização (assim lhe chamo) dos 20 novos cardeais, em cujo elenco se conta o
patriarca Manuel Clemente, bispo de Lisboa. Aí, por entre o clássico luxo das
colunas douradas, sobressaía, olímpico e triunfal, o vermelho escarlate dos
purpurados., um festival de brilho e chama, com anéis, barretes, bulas de pergaminhos ou similares.. Que terão
visto os milhões de espectadores e que
sínteses terão feito acerca de tão nobilíssimo cenário, tudo em manifesto
contraste com a simplicidade de um homem que tanto se tem esforçado por uma “Igreja pobre e para os pobres”?
Talvez seja preciso
começar por decifrar a nomenclatura originária de “cardeal” e um pouco dos seus
desenvolvimentos ao longo dos tempos. As rotas que o barco deu para fugir
àquele porto de chegada que a bússola lhe indicava!
Sinteticamente: o termo
entrou no vocabulário católico, logo após o fim da perseguição aos cristãos,
com a Paz que o Imperador Constantino ofereceu ao cristianismo: organizaram-se, ao redor da cidade romana, as paróquias, células da Igreja, com os
líderes, os párocos e respectivos assessores ou coadjutores, os diáconos, os
quais, por constituírem os eixos operacionais da Igreja, eram chamados “cardeais”,
isto é, etimologicamente, os “gonzos” que agilizavam e punham em movimento a
mensagem de J:Cristo. Eram conhecidos como “cardeais presbíteros” (padres),
“cardeais diáconos” (coadjutores), criando-se mais tarde nas dioceses, os
“cardeais bispos”. Cardeal significava acção, dinâmica, trabalho. Todas as
funções ganhavam, portanto, a classificação de “cardinalícias”. Com a
proeminência que a Igreja foi conquistando, promiscuindo-se com o poder
temporal dos monarcas, a designação de “cardeal” passou ao patamar de um
segregado, nomeado, uma espécie de
classe dos brâmanes”, a que o Papa Francisco diante dos próprios novos oficiais
chamou de “casta”, uma tentação que
deviam evitar. E não se enganava.
Já no reinado de Eugénio
III (1145-1153) os cardeais formavam o Senado do Pontífice. Tinham o privilégio
de senadores, o Colégio Cardinalício, uma classe aristocrática restrita, cujo
conteúdo funcional consistia em fiscalizar o Vaticano e escolher, em assembleia
de voto, o Papa. Com o Papa Eugénio IV (1431-1447) os cardeais ocupavam, em
termos de protocolo e hierarquia, um estatuto de precedência sobre padres,
bispos, arcebispos e patriarcas. Isto com a particular circunstância e o poder discricionário do Papa em nomear
cardeal um elemento que não fosse padre ou bispo ou clérigo algum.
E aqui começa o reino do
mais vil favoritismo e do mais descarado nepotismo, a começar pelo poder
imperial. Todos os reinos empertigavam-se, à compita, para ter na corte
pontifícia familiares ou mandatários seus, na categoria de cardeais. Mesmo
dentro da própria hierarquia eclesiástica era idêntico o escândalo, como no
caso do italiano Carlos Borromeo (mais tarde feito Santo) que, por ser sobrinho
do Papa Pio IV, ascendeu ao cardinalato,
com a idade de 18 anos apenas. Incrível. Outros foram Primeiros Ministros, Thomas Wolsey, Mazarino, Richelieu, Ximénez Cisneros
etc.. Outros até chegaram a ocupar o trono real, o que, para nós não é novidade
nenhuma: o cardeal D. Henrique, tio de D. Sebastião.
Basta fazer uma
leitura despreconceituosa da História,
para chegar-se a esta conclusão: a casta (chamar-lhe-ei raça) dos cardeais foi
a pior cizânia, o joio infiltrado na
seara da Igreja. Eles estiveram na origem dos piores escândalos públicos da religião cristã, tráfico de influências,
conluios obscuros, espionagem e até assassinatos. São do cardeal Paluzzo
Paluzzi, séc.XVII, as seguintes
blasfémias: “Se o Papa ordena liquidar
alguém na defesa da fé, faz-se isso sem fazer perguntas. Ele é a voz de Deus e
nós (a Santa Aliança) somos a mão executora” (Eric Frattini) . E nós ainda
nos espantamos com o fanatismo jihadistas na sala de redacção do Charlie
Hebdo?!
Não quero maçar-vos mais
com tétricas narrativas históricas. Há muita literatura nesse sentido, em
especial “Herdeiros do Pescador”, nos bastidores da morte e da sucessão papal” de
John Peter Pham, ed. Europa-América.
Tudo isto para esclarecer
a carga semântica que nos suscita o epíteto de “Cardeal”. Não tem um passado
limpo. E não foi por acaso que Bento XVI abandonou o Sumo Pontificado. Por muito menos
acaso, este próprio Francisco Papa compara
a cúria romana a um covil de lobos --- de cuja limpeza tem-se esforçado com um
denodo incomparável.
É por isso que eu imagino quanto não
terá custado à sua mentalidade e ao seu temperamento aquela tão aparatosa
cerimónia para nomear os seus mais directos colaboradores e assessores. Mas ---
noblesse oblige --- teve de observar
o protocolo. Ainda não chegou o tempo de simplificá-lo.
Teve de entregar o
barrete. Não sei se sabeis que, até 1969
(com o generalíssimo Francisco Franco e a pedido de Paulo VI) eram os soberanos
dos países católicos que tinham o exclusivo de impor a biretti na cabeça do novo
cardeal que, para o efeito, se ajoelhava
diante do monarca. Ridículo. Como ridículo é dizer-se que aquele barrete
significa o sangue que o seu titular está pronto a derramar por causa de Cristo. Um simples padre, na sua
Missa Nova, (aconteceu comigo em 1962) também passava a usar um barrete
idêntico, denominado o “tricórnio”, mas
de cor preta. Assim, o sangue de um jovem sacerdote era preto e o do cardeal
seria vermelho…
Teve de enfiar-lhes um anel. E ainda com a agravante de chamar-lhe
o “anel de Pedro”. Impossível, insuportável!
“Os calos são os anéis do povo trabalhador”, diz o ditado popular . Os
anéis de Pedro eram os anzóis, as redes, os remos, as rugas da dura faina do mar. Basta
de teatro de marionetes!
Mais: há dois nomes que não deviam ser embrulhados
naquela cerimónia:. o de Cristo e o de Pedro. Chamem todos os outros, os espirituais,
os metafísicos, os invisíveis, (Pai, Espírito Santo, etc.) mas estes dois não.
Não têm nada a ver com o espectáculo mundano. Aliás, estão contra tão sofisticada deturpação da realidade. Porque a sua vida assim o demonstra.
É por tudo isto --- e muito mais ficou por dizer --- que me
ponho na pele do Papa Francisco e imagino: “Que seca!” Mas no dia seguinte,
“pagou-se”, isto é, desabafou, com a transparência que o distingue: “Não penseis que agora pertenceis a uma
casta”.
Uma nota que me persegue e me revolta enquanto escrevo: pensar que a esta
hora está o Poder Judicial, refastelando-se
à mesma mesa e a convite do”
ex-recente-futuro” defunto Poder
Político na Quinta das Angústias. É o
despudor primário. “À mulher de César…”, sabeis o resto.. Deve convidar o inquilino
anfitrião para o almoço de despedida em
Lisboa, num dos salões de gala da Procuradoria Geral da República.
19.Fev.2015
Martins Júnior
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