Hoje bateu-me à porta um
aceno de saudade e trouxe-me o sabor agridoce do que antes fora serena fruição e hoje é um rasto desolador de amargura e destruição. Estou a falar de
Mocuba, coração da Zambézia, Moçambique, onde as cheias caudalosas inundaram
cidades e “machambas” e penetraram
telejornais e folhas impressas de todo o mundo. E tanto mais se me atravessou o
peito quanto me lembro da tragédia do ano 2000, que devastou o celeiro da nação,
o Xai-Xai, o Save, o Limpopo transbordando e afundando povoações, um cenário dantesco que ainda cheguei a ver de
perto, quando lá fui entregar, pessoalmente,
nos campos de acomodação de Magoanine, município de Maputo, os mil
contos que a comunidade da Ribeira Seca doou às vítimas, comprando víveres e
mantimentos no mercado de Xipamanine, esse formigueiro humano que Zeca Afonso
havia transformado em memorável balada.
Imagino,
agora em Mocuba, o desespero, a fome, as famílias que os rios bravios separaram,
algumas definitivamente devoradas pelas águas. Imagino os homens e as mulheres
atravessando os pântanos, carregadas com as mantas do pouco que conseguiram
salvar das suas palhotas e ainda aconchegando ao peito da capulana as crianças de olhitos vivos, inconscientemente
abertos à esperança.
Queria
tanto, tanto, que lá chegasse, ao menos, este abraço de asa dolente e servisse
de alavanca nessa luta contra a morte.
Mas,
porquê esse amor às terras e às gentes de Mocuba ? --- perguntareis. E eu
respondo convidando-vos a “ver” comigo
aquela ditosa pátria, coração da Zambézia, que conheci e calcorreei, já
lá vão 48 anos, Era a segunda fase da comissão do nosso Batalhão de Caçadores
1899, zona e tempo de manutenção, após o trágico primeiro ano em terras de Cabo
Delgado.
Mocuba
era um oásis, que se estendia desde o Gurúè (antes, Vila Junqueiro) até à
longínqua Morrumbala, de onde se passava para o país vizinho Malawi. De lá percorria-se a módica distância de 200 Km, de
picada, quase toda em linha recta, para
alcançar a cidade capital da província, Quelimane.
Era
um oásis de sonho, sobretudo para quem viera da dureza de Cabo Delgado: o
chá, o famoso chá “Licungo” era a
plantação-rainha, explorada por companhias inglesas, aonde chegavam, 4,30-5h da
manhã, grupos de africanos, dobrados sobre os arbustos, de onde sobressaíam, por entre o imenso verde oceano, os
chapéus de palha dos tarefeiros.
Terra
fértil, as mangueiras vinham trazer-nos os frutos ao “unimog” em andamento, a
cana de açúcar produzia duas vezes ao ano, daí o crescimento exponencial da
companhia inglesa “Sena Sugar”, os restaurantes, o comércio circulante, onde
predominavam os indianos, chinos e portugueses, alguns também da Madeira. Era
nessa altura um oásis cultural, servido por um excelente edifício, o
“cine-teatro de Mocuba”, onde consegui juntar setenta civis e militares para levarmos
à cena a provocadora peça de Francis Durremat, “A Visita da Velha Senhora”, já
conhecida na metrópole, assim se designava Portugal,, através do filme do mesmo
nome, com Anthony Quinn e Ingrid Bergman
como protagonistas. Um êxito (perdoe-se-me a imodéstia) cívico, social e
cultural que mereceu ampla referência no maior jornal diário, o “Notícias” do,
então, Lourenço Marques, capital de Moçambique. Eram todos amadores, mas com talento nato para o palco. Já
morreram muitos deles, talvez a maior parte. Jamais esquecerei o velho Pestana
de 81 anos, funcionário superior da “Sena Sugar”, cuja presença em cena foi
fenomenal, o açoriano Amarino, a
prodigiosa Ana Maria no papel da “Velha
Senhora”, em cuja residência se faziam os ensaios com o empenho do marido
António Manuel Fonseca, gente jovem, que, embora longe da pátria de origem,
enriqueciam o património cultural do
país de acolhimento.
Mesmo
vigiada pela Pide, havia ali gente culta, embora de forma clandestina.
Lembro-me, em Mutarara, junto à enorme ponte sobre o rio Zambeze, de um comerciante que me convidou à sala do
segundo piso e em cuja estante vi, com grande espanto meu, todos os volumes de
“O Capital” de Karl Marx. Cheguei a desconfiar, não fosse ele memo um agente disfarçado
da polícia política. No fim, convenci-me de que se tratava de mais um daqueles
europeus que ansiavam pelo derrube do colonialismo salazarista.
Não
posso terminar esta viagem de saudade sem referenciar o bom entendimento com a
missão de Mocuba, entregue aos padres franciscanos, na altura o italiano, Pe. Frei
Luciano em cuja igreja várias vezes celebrei para uma vasta população de brancos e nativos, bem como a participação na obra
social dirigida às crianças da área, tendo participado nas aulas e, ao
acordeão, nas festas de confraternização, com apoio de civis e militares,
conforme documenta a foto.
Peço
desculpa de tanto alongar-me neste percurso (e quase nada foi dito) mas de
Mocuba, poderia dizer-se aquele apelo que só se aplica a quem ama: “Love me or leave me” (ama-me ou deixa-me). Para tanto, bastava ler a mensagem esculpida
em mármore, à entrada: “Mocuba --- onde todos os caminhos se cruzam e todos os
corações se abraço”. É, de facto, o centro geográfico da Zambézia.
Termino
o meu postal, aludindo à primeira foto: trata-se da ponte sobre o rio Licungo.
Quantas vezes ali passei, de preferência a pé, acompanhando o meu amigo
hidrometrista António Manuel, demorando-me no ritmo das águas e na confluência
de ideias sobre a injustiça da guerra colonial!
Hoje,
é de coração partido que vejo quebrada a
mesma bela ponte de há 48 anos… Mas
ficou de pé “o arco de uma nova ponte”: a estima e a saudade pelo povo de
Mocuba e por todos os moçambicanos.
5.Fe.2015
Martins Júnior
saudades, saudades desse nobre país
ResponderEliminargostaria de lá voltar,,,, abraços amigos para todo o Batalhão 1899,e um abraço muito grande todo o Moçambique