“Menos com menos dá mais”, assim
ensina o teorema algébrico. Da mesma forma, aproximarei um outro: “ímpar com
ímpar dá par”, podendo inverter-se a semântica
figurativa nestes termos: se o “ímpar” significa “perfeito”, a soma dos dois, isto
é, o número “par” transforma-se na plena perfeição.
Vem esta tirada “gongórica” a propósito dos dois dias
ímpares justapostos: o 31
de Janeiro e o 1 de
Fevereiro, para no mesmo
tronco ímpar fazer
surgir a alma-par de
dois gigantes construtores
de um novo ciclo
no crescimento da
árvore genealógica dos valores
humanos: o italiano
João Melchior Bosco e o madeirense
Laurindo Pestana. Separados em
vida por mais de seis décadas e distantes
por milhares de quilómetros,
ambos, sem nunca se terem visto, irmanaram-se como dois caudalosos afluentes do
mesmo rio em demanda de um sonho maior.
Começo por
dizer que não me comovem
nem agradam as cerimónias oficiais
e mesmo oficiosas a
personagens que já
nos deixaram. Salvo raras excepções, os seus promotores
o que mais
querem é chamar
a si os louros
dos homenageados. Muito menos
me agradam as estátuas
que tornam insensível e
morta gente que foi fogo e vida. Pior
ainda quando lhe
amarram as mãos
enclavinhadas ou lhe inclinam
piedosamente a cabeça e
a circundam de uma
auréola de santos. São gostos.
Tanto enigma,
para quê? --- perguntar-me-eis. E
eu respondo:
Para
sintetizar o quanto vivi
e senti ao recordar o
bicentenário do revolucionário pacífico
João Melchior Bosco (o chamado São e Dom Bosco) , 1815-1888, e, lado a lado, o verdadeiro atlante ilhéu. (sem “São
nem “Dom”) Laurindo Leal Pestana, 1883-1951.
A ponte que os
uniu: a humanização dos “marginais” da vida. Os pilares que a
suportaram: a infância e a juventude.
De João Melchior Bosco quero
guardar a fidelidade à sua classe: órfão de pai aos dois anos de idade, sofreu na carne os
espinhos de uma família
colocada na periferia
da sociedade. Toda a sua vida
foi a identificação com os
da sua condição.
No fervilhar da Revolução Industrial, deparou-se com
uma juventude abandonada na cidade de Turim. Simultaneamente defrontou-se
com o chamado Risorgimento, que
envolvia as intermináveis guerras pela unificação da Itália e, pior ainda, a luta visceral entre
esse desígnio nacional e a supremacia
do Papado, com os
respectivos privilégios territoriais
e jurisdicionais, os Estados
Pontifícios.
A esta encruzilhada de
fogo cruzado entre duas revoluções, o talentoso filho de operário fabril lançou-se numa outra
revolução: alfabetizar, promover as crianças e os
jovens destroçados como carne
para canhão ou ferrugem
das oficinas.
Já sacerdote,
teve de enfrentar
a hostilização do
bispo da diocese,
Lorenzo Gastardi, que o
marginalizou e lhe instaurou um
processo canónico sob
a acusação de
estar a minar a hierarquia
eclesiástica. Só mais
tarde, com a elevação de
Leão XIII, o Papa
do Operariado, ao trono
pontifício, ( recordemos a Encíclica Rerum
Novarum) é que tiveram fim as
hostilidades. Por entre
ventos e marés, empreendeu
a grande e decisiva
criação das Escolas
Salesianas, espalhadas por
todo o mundo, com o objectivo de
abrir às crianças
e jovens os
caminhos da vida, da alegria,
da formação integral, como proclamava, há milénios, o poeta romano Juvenalis anima sana
in corpore sano (alma sã
em corpo são).
O Espírito sopra em
toda a parte. E
soprou também na Madeira.
Quantos e quantos terão
sido os promotores,
heróis anónimos, sem glórias nem
estátuas, que sentiram
e realizaram o mesmo apelo solidário! Ficou-nos,
mais de perto, o esforço
sem tréguas de
um outro clérigo, Padre Laurindo
Leal Pestana, pároco de Santa
Maria Maior que, do “terreiro” da sua igreja, todos os
dias via com os
próprios olhos a
miséria física e moral que
cercava crianças e jovens,
ali no calhau de São Tiago e do Almirante Reis.
E lançou mãos à
obra, concitando contra si os
olhares farisaicos dos detentores do
poder político e religioso. Mas nunca desistiu, até
que formou a Escola das Artes e
Ofícios, uma autêntica “universidade”, à
época, para a construção de uma sociedade
nova. Caiu-lhe nas mãos, como
uma bênção, a vinda
dos Salesianos de D. Bosco para
a Madeira, os
quais, mercê da sua
organização internacionalmente estruturada, deram continuidade a uma obra
que, sem eles, talvez, tivesse ficado pelo sonho
inacabado.
Incontáveis na Madeira e
no Planeta, os contributos daquela criança, órfã de dois anos,
fiel à classe operária a que pertencia ( ele foi proclamado
o patrono de Brasília) bem como, entre
nós, a do modesto mas intrépido
lutador que foi pioneiro nesta causa, Laurindo Leal Pestana.
Entretanto, peço-vos só
mais um momento para constatarmos como
no mais fino pano cai a nódoa. Do Colégio Salesiano, onde se ensinava a Alegria e a Justiça social, saíram (e mais tarde dela se aproveitaram)
“exemplares” da ditadura e da corrupção:
Benito Mussolini, a personificação do fascismo,
assistiu em 1929 à beatificação de São Bosco, cuja escola tinha frequentado em Faenza. E em 2005, foi o corrupto e corruptor
Sílvio Berlusconi que proferiu altos elogios a D. Bosco,
no Instituto Salesiano Santo
Ambrósio, onde estudara na sua juventude.
Folheando as páginas dos
diários e das redes sociais,
talvez que entre nós se possam lobrigar, mutatis
mutandis, idênticos episódios em
celebrações centenárias…
É sempre assim:
o poder político, possesso daquela estranha
ambição, a de concubinar-se com o
poder religioso! E nem sempre o olhar
espiritual da Igreja faz o
mínimo esforço para
evitar o mafioso conluio.
Aos carismáticos líderes João Melchior Bosco e
Laurindo Leal Pestana,
feitos da mesma carne que nós, entregamos os
crisântemos da nossa
homenagem e, mais belos e estimáveis,
os cravos vermelhos do seu sonho comum: seguir as suas
pegadas!
31.Jan - 1.Fev.2015
Martins Júnior
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