Podia começar este
“bate-papo” intermitente, entre dois dias pares, com o título já anteriormente
utilizado (“Porque hoje é sábado, amanhã domingo…”), dado que, no meu serviço
hebdomadário, terei de transmitir os textos bíblicos programados no respectivo
ano litúrgico. E precisamente amanhã
abrimos o Livro do Génesis e lá encontramos uma página paradigmática da
literatura bíblica, o mesmo que dizer, da literatura oriental, navegando daí
para o vasto mar da hermenêutica, tarefa nada fácil esta de interpretar o que a
letra do texto nos quer dizer.
Em concreto: a página a
que me refiro é aquela em que Moisés nos
conta o cenário de espanto e júbilo que se seguiu ao “dilúvio universal”
que poupou apenas os escassos exemplares
vivos que Noé (“com seiscentos e um anos de idade”) conseguiu guardar na arca.
Numa linguagem envolta em metáforas carregadas de carinho, o Senhor Deus Iaveh
diz que se reconcilia com o género humano, agora renovado, assinalando o ícon
dessa reconciliação:
”Quando eu cobrir a terra de nuvens e aí aparecer o arco-íris,
recordar-me-ei da aliança que firmei convosco e com todos os seres vivos da
terra: e as águas do dilúvio não voltarão mais a destruir as criaturas”(Gen.9,
14).
De cenas como esta anda a
Bíblia cheia. E porquê? É o estilo literário comum às literaturas orientais e
mediterrânicas, marcadas pelo mito, por um poético sentido onírico, em que o
sonho, a metáfora, a alegoria, enfim, a parábola se apresentam como o refrão
instrumental da sua pedagogia, quer dizer, numa linguagem empírica, visível a
olho nú, mas com o intuito de transmitir o invisível, o misterioso, Basta
compulsarmos a civilização grega e a sua multiforme criação mitológica.
Não é de somenos
importância esta reflexão. Não é divertida, bem sei, mas torna-se sugestiva e útil para a percepção da
realidade. Partamos de um princípio pacificamente aceite: quanto mais atrasado,
analfabeto, (permitam-me) infantil é uma pessoa ou um povo mais raciocinam
pelos olhos, pelo sensorial e tangível. O próprio J:Cristo afirmou que só falava ao povo em parábolas, para que depois
os ouvintes tirassem as devidas ilações.
Daí
que seja necessário um cuidado enorme para não cairmos numa interpretação
puramente literal dos textos bíblicos: a sarça ardente, o maná do deserto, a
maçã de Adão, toda a narrativa da criação (“ao
sétimo dia Deus descansou”…tão depressa se cansou o Criador, numa semana de
trabalho?!) o Livro de Job, considerado pelos exegetas como uma bem concebida
alegoria, também algumas expressões que ainda hoje se dizem “Jesus está sentado à mão direita de Deus
Pai” (tanto tempo sentado… mas como à mão direita, se Deus é Espírito, não
tem direita nem esquerda, nem corpo?!).
Levar-nos-ia longe o
filão deste rio (cá está mais uma metáfora) de questões e interpretações, o que
obriga o crente e o não crente a pesquisar, a repensar, a reconstruir
desconstruindo. Além do prazer de descobrir, este esforço configura um valoroso
exercício Quaresmal, mais que jejuns e
orações vocais.. Não tenho receio de repetir o que ensino à gente que me escuta
regularmente: Rezar dá menos trabalho que pensar. Pensar custa muito mais. É o
valor da denominada “oração mental”.
Esta caminhada para a
desmitização, assente em critérios seguros, é consonante com a “autoridade
eclesiástica que reconhece a necessária dependência da investigação
científica”(Gonsalez-Ruiz, Igreja, Fé e
Missão). E sublinha Paul Tillich, em
Dynamics of the Faith: “A
desmitização é uma atitude constante do crente para impedir que a sua fé se
torne idolátrica.”
Com efeito, cada lugar e
cada civilização têm a sua idiossincrasia terminológica, a tal ponto de (diz ainda Gonsalez-Ruiz) “uma verdade poder
ser traduzida por certas representações falsas em si mesmas, mas que em
determinado estado de civilização sugerem bem a verdade pensada”.
Fiquemos com a romântica
beleza do arco-íris. O que é mais curioso é que ele serve, não para nós, para
Deus recordar-se da aliança feita com o seu povo, como diz a leitura de amanhã.
Trata-se manifestamente de uma hipérbole: Deus recupera a memória avistando o
arco-íris… O mais importante, porém, é a moral da história: tudo o que é humano
está articulado com o divino, como talentosamente sintetiza o grande poeta e
dramaturgo Paul Claudel, em Présence et
Prophétie: “Não há um universo religioso e um universo profano; há uma
única revelação transmitida numa linguagem inumerável, contínua e
reciprocamente transmissível”.
De hoje a um mês o
arco-íris há-de trazer-nos a Primavera multicolor e benfazeja. Viva!
21.Fev.2015
Martins Júnior
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