Quem,
ao meio da semana, se dá ao gosto de andar à roda da ilha fica de olhos cheios de cor e
som. De dois a três quilómetros de distância, lá surgem os mastaréus
embandeirados, calçados de verde, os policromos plásticos esticados ao longo das estradas ou abertos em
pavilhão envolvente em todo o perímetro do adro e, ainda, o timbre das
campânulas sonoras que chegam até à paróquia vizinha. Aqui, ainda o cheiro da
festa que se despe, acolá o verde tenro da festa que se prepara. E o panfleto
pregado às paredes, anunciando as procissões, as girândolas do meio dia, os
conjuntos, os artistas lá de fora, quase sempre pimba, os palhaços, as bandas
filarmónicas que farão o acompanhamento “às semilhas para a igreja e às ofertas
para o bazar”. Embora com figurinos
ligeiramente paralelos, cada freguesia celebra o orago imprimindo a sua marca característica também ligeiramente distinta,
podendo aplicar-se-lhes o velho ditado, “cada roca com seu fuso e cada terra
com seu uso”. O certo é que cada Povo tem a festa que merece . E as festas ---
todas elas respeitáveis --- revelam a identidade das suas gentes.
Mas há festas com estórias
e, sobretudo, com história. Sumariamente satisfarei a vossa curiosidade
pintando nesta tela breve a silhueta das festas profano-religiosas ( são assim
quase todas aquelas a que me estou
referindo) localizadas num meio, antes estruturalmente
ruralizado, hoje semi-urbanizado, a Ribeira Seca. Estou certo que nunca ninguém
vos contou uma --- esta --- realidade que ultrapassa a ficção.
Antes de 1973-74, quando não tínhamos
iluminação pública, as nossas festas eram
alimentadas com geradoras, uma delas do famoso “Soares de Câmara de Lobos”. Lembro-me de quando chegavam os velhos motores: miúdos e graúdos acorriam curiosos à
volta das majestosas máquinas, hoje diríamos as “bombas”, que prenunciavam o
arraial.
Com o aparecimento da energia pública, fruto também do esforço
que os moradores fizeram para construir o transformador, tudo se alterou. Foi a
magia da luz que se espalhava por caminhos e veredas, num abraço triunfal à
aldeia inteira.
No entanto, foi sol de
pouco brilho. A partir de certa altura, mercê dos acontecimentos ocorridos com
as reivindicações do Povo da Ribeira Seca (contra o regime da colonia, contra a
exploração dos donos dos engenhos, depois, a minha suspensão “a divinis” pela
diocese) nunca mais a EEM deferiu os nossos
requerimentos, alegando que a Câmara se recusava a passar a licença do arraial.
Esta recusa implicava a proibição de qualquer mastro ou bandeira em caminhos
públicos. Mais: os próprios comandos local e regional da PSP também denegavam o
policiamento protocolar dos arraiais, apesar dos requerimentos feitos pela
comissão de festas. Foguetes, nem pensar. Até eram censuradas as cantigas, as
quais tinham de ser apresentadas previamente ao delegado da Inspecção de
Espectáculos, sediada na Câmara. A própria “Pide” veio fiscalizar as canções e
os bailados dos jovens e adultos.
Então, não havia festa ?
--- perguntareis vós. Puro engano! O espírito da festa dava asas à imaginação
popular: os mastros eram colocados na berma dos caminhos, mas em terrenos
particulares. A luz eléctrica, fomos busca-la às empresas. Primeiro, ao velho “Soares”,
depois (não há dinheiro que pague esse favor) por ex. às que operavam no vale
do Porto Novo e na ribeira do Faial. Nunca
a Ribeira Seca ficou tão cheia, tão iluminada, em todo o perímetro da paróquia. Era a apoteose do Povo e o ranger de
dentes dos que juraram acabar com as festas da Ribeira Seca. Recordo o ano de
1985, o ano em que a igreja foi invadida pela polícia. Fez-se na montanha do Barreiro,
junto à Levada Nova, a mais alta de Machico, a perfeita silhueta da igreja da
Ribeira Seca. Ai!, o esforço denodado dos jovens e homens fortes que foram transportando, a pulso
e durante a noite, a enorme geradora até
ao cimo, onde ficou a brilhar, feerico e altaneiro, o ex-libris do histórico templo.
As pessoas choravam, comovidas mas felizes, por verem o que nunca tinham visto.
Quanto ao policiamento,
tudo resolvido: homens de idade, os “homens bons” do sítio, de braçadeira
vermelha, iam passeando entre as barracas e bares e bastava só a sua presença
com a gentileza pura das gentes rurais para que todos se sentissem bem e
seguros. Os foguetes, também houve
solução: substituímo-los por milhares de balões coloridos lançados ao meio dia
de sábado. E no domingo, um helicóptero veio encher de milhões de pétalas todo
o percurso da procissão. As romarias de cada um dos seis sítios saíam do seu
lugar de origem cantando marcha própria e duas canções originais (perfaziam
dezoito músicas) em direcção ao palco. Outros sítios circunvizinhos (e até um
deles, do Caniçal) juntaram-se nesse ano à festa. Dias fabulosos, noites
inenarráveis, expressas em quadras como esta, que faz parte de um dos CD´s já
editados.
Na festa que o Povo organiza
Há mais alegria e verdade
Por isso trazemos a estrela
A estrela da Felicidade
Fica,
no entanto, uma amarga reminiscência. Foi no Ano Internacional da Juventude. Os
rapazes e raparigas, com a ajuda dos pais, construíram um triplo arco monumental
na entrada que dá acesso directo ao adro. Eis senão quando, estando tudo pronto
e engalanado, surgem duas viaturas policiais e um camião da Câmara de onde saltaram
trabalhadores municipais para abater aquela obra-prima. Os jovens opuseram-se
mas, perante a ofensiva repentina da força policial, tipo operação de guerrilha
na mata africana, sentiram-se impotentes. Os gritos de revolta ecoavam no vale.
E dos gritos passaram às lágrimas visto que --- maquiavélico cinismo! --- os
destruidores, forçados pelo presidente da Câmara, eram precisamente familiares
dos jovens que tinham construído aquele monumento verde. A esperança fez-se
raiva incontida.
Mas
a festa fez-se! Com mais gana, com mais brilho e, sobretudo, com mais união. E
cantavam, a plenos pulmões:
Quanto mais afastam a gente
Mais forte e unido
O Povo se sente
É tal o encanto que
inunda a memória deste Povo que até nos dispensamos de comentar esse retorno à
pré-história, que os senhores da ilha
nos queriam impor. E os senhores da diocese? --- indagará alguém. Bom, esses também
fizeram a sua parte de especialidade: proibiram-nos a compra de hóstias. E
também de qualquer sacerdote que viesse pregar à Ribeira Seca. Mas, mesmo assim,
as hóstias fizeram-se e a Eucaristia cantou vitória.
E digam lá se é verdade ou
não que a realidade ultrapassa a ficção?!
13.Ago.2015
Martins Júnior
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