Vamos
continuar no mar de anteontem. Só que, desta vez, não é o mar suave da nossa
baía. Trata-se de um outro, povoado de sereias e tubarões, adamastores e
cruzeiros. Por falar em cruzeiros, fico-me a indagar por qual razão deram um
cognome tão lustroso quão enigmático ---
um derivado de cruzes e crucíferos --- a essas majestosas cidades flutuantes em que se passeiam e
divertem, como em Las Vegas, turistas de todo o mundo e que enchem os olhos e
as ruas da nossa capital.
Cruzeiros
--- soa mal este nome a quem lá dentro, nem por sombra, sonha com espinhos e
calvários, antes com galáxias no céu e neptuninas musas à borda de água. Mas há outros cruzeiros que trazem no bojo
suores frios, suores de sangue, braços ternos de crianças cujos vagidos podem
tornar-se prenúncio de adamastores.
É
um mar revolto que ingloriamente marulha
todos os dias dentro de mim. E agora, com pesadas placas tectónicas à vista que ameaçam
as estruturas da Europa, “jangada de pedra” ou madre da civilização. Mais que subentendido está que é do
drama --- mais do que drama, é tragédia
--- que hoje me ocupo e preocupo: dos,
por enquanto, quatro milhões de
refugiados que furam a Europa como túneis sem luz ao fundo, gente como nós, esses
que vêm foragidos da guerra, da fome, da insegurança, para quem o preço da vida
e da morte é o mesmo, seja em terra própria,
seja no mar alheio. Ainda que nos
apeteça tapar o rosto envergonhado face a tamanha barbárie humana, ela continua
a marcha inexorável em direcção à nossa casa, ao sofá do nosso merecido remanso.
Até os sumptuosos tronos dos “Cameron’s e
das “Rainhas” seculares, até a nova “raça ariana” que fez tremer o mundo sob o
berros do Reich, todos eles civilizados
poderosos que até há bem pouco tempo se apresentavam como
sentinelas de ferro à entrada do Velho Continente, agora mendigam à França que
detenha em Calais, as “hordas” dos famintos. E por mais implacável que se
revele o ministro alemão das Finanças, vê-se a Senhora Merkel entre a espada
dos neonazis e a parede dos “invasores”.
Não
vou esquadrinhar novas versões ou perspectivas
--- os analistas encharcam as impressoras e os áudio-visuais de todas as
horas --- mas tão só constatar, primeiro, o caldeirão de contradições nas
propostas e estratégias possíveis, as quais vão desde a abertura dos países da EU
(já está chegando a vez de Portugal), a
assistência humanitária, como corajosamente propôs o Papa Francisco em
Lampedusa, a quem consegue a bóia de
salvação para atingir a costa europeia, outros entendem que essa ajuda deve ser
prestada nas terras de origem e ainda há
quem considere que a integração dos migrantes na Europa deve ser considerada
uma solução ao envelhecimento das nossas populações e uma excelente
oportunidade, porque precisamos de
trabalhadores jovens. É o investigador sueco Ruben Andersson que o afirma, ao
mesmo tempo que denuncia “ ter-se criado, em torno da crise, uma indústria que vive do clima de pânico”. Um
deputado português no Parlamento Europeu avançou mesmo a solução de estancar a
tragédia, não cá, mas a montante, recorrendo à luta armada contra o “auro-proclamado
Estado Islâmico”. Enfim, bem poderia Karen
Horney reescrever a sua obra de análise sociológica, “A
Personalidade neurótica do nosso tempo”.
Ousaria
eu perguntar aos meus amigos: “E qual é a sua posição neste fogo cruzado das
mais díspares soluções?
Outro
aspecto de série ponderação é o “ataque”
à Europa. São extractos de populações em idade activa, sobretudo jovens a que se
juntam crianças, os que aqui desembarcam. Antigamente, falava-se do “perigo
amarelo”, mas agora estamos confrontados com a “ameaça” afro-asiática. Será
este o revivalismo do Império Muçulmano de séculos anteriores? Esta onda
incomensurável, incontrolável, não consigo dissociá-la, mutatis mutandis, dessoutra em
que aqueles a quem os imperadores, senhores do mundo, classificavam de “bárbaros”, foram esses que
minaram e destruíram o inamovível Império de Roma.
A
prova do perigo aí está: os países da EU, até então separados por um centralismo financeiro desumanizante,
começam a entender que não há lugar para a dicotomia norte-sul. Não esqueçamos
que a nação “non-grata” da EU, a pobre e endividada Grécia, é ela que mais
refugiados tem acolhido, em paralelo com a Itália, sendo estes países a porta estratégica e a fronteira mais exposta
à chegada dos migrantes. Serão estes que obrigarão os responsáveis a
reencontrar a força semântica e operacional que fez nascer a autêntica União
dos Povos Europeus, para que jamais nos assombrem os fantasmas do Holocausto.
Deixo
aqui o pensamento de Sylvie Chalaye, antropóloga, Professora da Sorbonne Nouvelle, como paradigma e
tentativa de interpretar este fenómeno, de forma optimista e construtiva: “A
prova de que a imigração não é conjuntural, como querem fazer crer alguns
políticos, está expressa nos movimentos migratórios que são fenómenos
ontológicos inscritos na memória dos povos e participam na sua renovação e
vitalidade”.
É
inegável que, na hora presente,
movimentamo-nos num dos picos anormais, periclitantes, de todo este
problema, fruto também de uma injusta globalização. Mas não há outro caminho.
Sob pena de que algum dia os “cruzeiros.de-negro”
venham abalroar os “cruzeiros-de-luxo” em que os europeus têm
a ilusão de navegar. É no abraço comum que se agiganta a bandeira global do
Homem, forçoso migrante do Planeta.
27.Ago.2015
Martins Júnior
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