Nascido no mar, é lá que
navego. Em todos os mares. Mas evito navegar à bolina, terra à vista. Prefiro o
largo, o vasto oceano, de onde se abarca a linha sempre mais longínqua do
horizonte e nos dá a leitura multiforme e serena de toda a envolvente. Isto, para repetir que não me
movem os relâmpagos da “Última Hora”,
os episódios fortuitos, presa fácil para
quem lhe escasseia a visão holística da
realidade. Mas hoje, vou embarcar junto à falésia da nossa costa, mais precisamente,
mais a norte, a terra onde nasceu a “estrela”
que neste dia ilumina a comunicação social, particularmente a madeirense.
Trata-se de uma nova, Boa-Nova, não tanto para quem a observa à vista desarmada, mas sobretudo pelo
brilho invisível que ela transporta.
É a notícia de que um
madeirense foi nomeado Bispo de Setúbal.
Um troféu de pódio, com direito
a hino e fanfarra de libré, dirão
os que definem as festas pelo
batente do foguetório. Ou os que interpretam os títulos hierárquicos da Igreja como
os galões que separam os sargentos dos oficiais, ou as “estrelas” que deixam
para trás os ombros dos coronéis e saltam para as mangas dos brigadeiros e
generais. Mas tenho a certeza que o
tonsurado e simpático sacerdote, Prof. Dr. José Carvalho, agora promovido à
mitra episcopal, não adormece nesse
“dolce farniente” com que o vulgo se habituou a ver as promoções
a bispo, idênticas às “ordens de serviço” dos mundanos galardões militares.
Não vou referir-me ao
ilustrado filho deste concelho, dada a minha insuficiência de meios nesta
matéria. Apenas e tão-só reflectir sobre uma instituição que, ao longo dos
séculos, tem sido um sinal de contradição,
tais as vicissitudes e as manipulações com que a violentaram os negócios do poder, travestidos de piedosos vernizes sacros.
Remontando aos primórdios
do Cristianismo, o bispo --- escreve o Grande Apóstolo Paulo de
Tarso ao seu colaborador Timóteo --- deve
ser um homem irrepreensível, marido de uma só mulher, vigilante, sóbrio,
hospitaleiro, apto a ensinar …não espancador, não cobiçoso de torpe ganância, não avarento…Que governe bem a sua casa, tendo
seus filhos em sujeição, com toda a modéstia…Porque se alguém não sabe governar
a própria casa, como terá o cuidado da igreja de Deus? “ (I Timóteo,
3, 2-5).
Eis o cartão de
identidade, eis a mitra, eis o anel, eis a cruz peitoral e o báculo do verdadeiro
bispo da Igreja. Ao sopesar cada qualificativo e ao cotejá-los com o figurino
oficial dos bispo de hoje , quão
distantes e quão ridículos estes se nos
apresentam: solteiros, neles a
sobriedade é um palacete, a cruz peitoral não passa de um simulacro de cordão
de noiva casadoira, o báculo de pastor ( que deveria ser “hospitaleiro“ …” não
espancador”) transforma-se num reluzente
chicote castigador em cima das “ovelhas” que lhe cheiram a terra e a
autenticidade… E em vez do crânio descoberto, iluminado, “apto a ensinar”,
encaixam-lhe uns altos barretes cravejados de jóias e filigranas de ouro que,
em bando, mais me parecem os indecifráveis capuzes dos KU Klux Klan.
A verdade é que são de
uma eloquência retumbante as exigências identitárias que Paulo traça para o
verdadeiro “episcopus”, o que não dorme ao relento, mas fica sempre “vigilante” para trazer ao aprisco todo o rebanho. Não há comparação possível. Qualquer
dissemelhança é a pura e dura realidade!
Por isso que, até ao
século V, os bispos e presbíteros eram escolhidos pela comunidade…”tomados de entre os homens e constituídos em favor deles ...e que possam compreender
ternamente os ignorantes e errados, pois que eles mesmos também estão rodeados
de fraqueza” (Carta aos Hebreus,
1-2). Que profundidade! E que genuíno
reconhecimento da condição humana, gerador da mais sã e transparente humildade”!
Recordo o vigoroso Santo Ambrósio, bispo de Milão, que ao
Imperador Teodósio proibiu de entrar na catedral por ter mandado o exército
invadir e saquear uma população indefesa. Recordo, por junto, Inácio de Antioquia, Atanásio, João Crisóstomo,
para quem era imperativo inadiável o pensamento paulino:
“O que sobra na mesa dos ricos é o
que falta e pertence à mesa dos pobres”.
Mas tudo se alterou, a partir do século V. Os
papas rivalizaram em luxo e poder com os reinos do mundo: a Igreja tornou-se
imperialista e, como diz o maior teólogo vivo, colega de Ratzinger na
Universidade de Tubinga: “A Igreja, de perseguida
passou a perseguidora” (“O
Cristianismo: Essência e História”.).
Nada
tendo a ver com aquele que queria ser missionário e foi agora nomeado a Grande
Missão em Setúbal, manda a verdade citar aqui a denúncia corajosa de um grupo adstrito à Cúria Romana, sob o pseudónimo I
MILLENARI: “a Igreja não pode continuar
com o mesmo critério mesquinho e arbitrário de recorrer a certos sacerdotes,
quase sempre carreiristas e intriguistas, considerando-os no dia seguinte
habilitados e capazes de exercer a arte de ser bispo, tendo por trás a
indicação e a complacência de quantos contratualizam o sucesso do seu benjamim”
…(“Via col vento in Vaticano”, em tradução portuguesa “O Vaticano contra
Cristo”, pág. 126).
Até
onde nos levaria este caminhar por entre
uma floresta de dois mil anos, enigmas, desvios, avanços e recuos?! Mas paro
aqui, pressupondo que muitos amigos e colegas dos “Dias Ímpares” já pararam a meio deste escrito. Hoje achei oportuno navegar à bolina, perto de
nós, com os nossos. Com o novo bispo
que, assim esperamos, configurar-se-á, na parte aplicável, com o protótipo do “episcopus” traçado por Paulo
de Tarso. A garantia desta esperança não podia ser melhor: quem o nomeou foi um
verdadeiro bispo, o de Roma, Francisco, um Papa Cristão, como sabiamente o
classifica o teólogo Anselmo Borges.
25.Ago.2015
Martins Júnior
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