Tal
como as águas dos rios que serão tão puras
e genuínas quanto mais se aproximarem da nascente original, assim também há pessoas
que se transcendem a si próprias e em todo o seu ser reflectem a limpidez transbordante do grande rio
da história. Por elas circulam as fontes de outras eras e nessa mesma dimensão
ganham altitudes e latitudes como se de gigantes vivos se tratassem. Por mais
paradoxal que nos pareça a sua estatura, afinal elas não são mais que o fio de
água fresca saída da rocha milenar que lhe serviu de seio materno.
É
nesta imagem longa que hoje vejo Giorgio
Bergoglio, a personalidade mais desconcertante e, ao mesmo tempo, mais imponente
e admiranda deste século. Porquê?... É que na transição desta noite para o dia de
amanhã perfazem-se 1000 dias do
pontificado de Francisco Papa --- “bispo de Roma”, como ele próprio quis
chamar-se.
Rios
de tinta e quilómetros de película estender-se-ão sobre a sua presença no mundo
que habitamos. Panegíricos, marchas triunfais, poemas e hossanas já foram
tecidos e muitos mais tecer-se-ão em homenagem àquele que parece ter vindo “de
um outro mundo”. Não será hiperbólico dizer-se que para o grande universo de
crentes e não crentes, ele surge com o brilho e espanto de um inquilino “extraterrestre”
no palácio do Vaticano. Diria mesmo, de um intruso na colunata barroca de
Bernini, corpo estranho entre o génio
aristocrático de Miguel Ângelo e Leonardo da Vinci. E volto à mesma pergunta:
Porquê?
E
a resposta deixa-nos vencidos, desarmados: é porque ele não é mais que o fio de
água genuína saído da nascente originária. Nos 1000 dias das sua passagem estão
escritos 1000 anos, 2000 anos, enfim todos os séculos e milénios do que de mais belo e simples
possui a condição humana. No que concerne à narrativa histórica da Igreja
Vaticana, o que de mais claro se pode dizer --- e nisso está o “fenómeno Bergoglio”
--- é que ele veio abrir portas e
janelas de um armazém bimilenar, dourado
por fora mas estruturalmente poluído
por dentro. O espanto está onde não deveria estar. Como já tive oportunidade de
constatar, Francisco Pontífice --- etimologicamente, “ponte” entre-rios --- não fez mais que o
óbvio: raspar as paredes do Vaticano, caiadas de ouro e prata, ao longo de 21
séculos, e restituí-la à cantaria nua e pura da sua construção original.
Alguns
outros foram os que --- rari nantes in
gurgite vasto, “raros nadando no
imenso abismo”, como dizia o poeta
Virgílio --- tentaram e conseguiram fazer com que a sede romana fosse a casa
universal, tornando habitável o lugar que deveria ser a Belém do
Ocidente, onde o Mestre renascesse todos os dias. Pagaram, porém, com o exílio e até com o próprio
sangue tão nobre e tão evidente tarefa, porque outros, o grosso da manada,
voltaram a desumanizar aquilo que era sagrado.
Aqui
poderia cotejar o pensamento de Bergoglio com o de escritores e profetas,
sábios e teólogos, mestres e mártires de outros tempos. Cito, por todos, o paradigma imorredoiro que hoje, 7
de Dezembro, se comemora: Ambrósio, bispo de Milão, jurista brilhante,
que, mesmo não baptizado, o povo escolheu
como pastor da sua diocese, tendo recebido no mesmo dia o baptismo, o sacerdócio
e a sagração episcopal. Na história ficou para sempre a atitude intrépida de
Santo Ambrósio que, no século IV, tendo tomado conhecimento que as tropas do
Imperador Teodósio invadiram a população indefesa de Tessalónica, proibiu o
Imperador de entrar na catedral sem que, primeiro, se penitenciasse durante
meses, descalço, nas neves dos Alpes.
Se
acreditasse nas teses budistas, não hesitaria em proclamar, sem peias de
espécie alguma, que Francisco Papa é hoje a reincarnação viva desses heróis de antanho, direi, do próprio
Cristo --- os quais, se cá viessem, poriam os seus pés nas pegadas do
Mensageiro da Paz --- a Paz, esse almejado troféu, arduamente conquistado na luta pela Verdade e pela Transparência sem
medos.
Saúdo,
pois, militantemente os 1000 dias que são 1000, 2000 anos passados. E outros 1000,
2000 anos vindouros! Se houver quem lhe siga o corajoso percurso…
07.Dez.15
Martins Júnior
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