sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

CLIMA DE CORRUPÇÃO E CORRUPÇÃO DO CLIMA --- onde são arguidas as religiões

           
              Imagino que o mesmo se deve passar convosco: é que há instantâneos na vida que nos chocam como um relâmpago. E, como um relâmpago, projectam um raio de luz tão fugaz quanto impressivo no nosso subconsciente adormecido. Do susto inicial passamos  descoberta de  pistas que umas vezes confortam, outras vezes perturbam. E interpelam-nos até à medula dos nossos conceitos ou preconceitos.
         Foi um dia destes. Atravessava eu a corredora,  quando um rádio-ouvinte da Antena Aberta sobre o cancro da corrupção que corrói a sociedade, chama à liça o problema religioso e, sem titubear, emite esta estranha opinião: “Quem muito tem contribuído  para o vício da corrupção é a Igreja Católica, porque na religião luterana as coisas não se passam assim. A educação católica ensina a devoção mas não dá a formação às pessoas”. Parei, atónito, com o relampejar  seco desta afirmação, sentei-me e pus-me a matutar num facto que atravessa o  quotidiano dos nossos noticiários e respectivos comentadores: enquanto entre nós, no sul, os corruptos e corruptores continuam nos cargos e até chegam a ser promovidos,  sucede que nos países nórdicos, por muito menos, demitem-se ou são demitidos imediatamente. A história mostra que os anglo-saxónicos optaram pelo luteranismo e, em contrapartida,  os do sul-europeu pelo catolicismo,  supostamente evangelizador.
Como num caleidoscópio efervescente passaram-me pela retina as cenas dos  cristãos-novos, a Inquisição, os escritores e cientistas que tiveram de sair de Portugal e exilaram-se na Holanda, na Alemanha, onde foram bem recebidos, caso do nosso Damião de Góis. Logo de rompante, acudiram-se à memória as “Conferências do Casino”,  em 1871, com a famosa (e fatal para o projecto) dissertação crítica --- Causas da decadência dos Povos Peninsulares ---  em que Antero de Quental acusa a pusilanimidade e a dependência de Portugal e Espanha aos dogmas de Roma, em vez da plena libertação da criatividade do espírito humano. A tudo isto chega e  cai-me nas mãos, esse duplo “atentado” ao sagrado mito do Vaticano. Refiro-me aos dois livros “malditos” --- Avareza, de Emiliano Fitipaldi e Via Crucis, de Gianluigi Nuzzi, ambos jornalistas --- cujos testemunhos, cópias de documentos oficiais sigilosos, denunciam a ganância e a corrupção nas entranhas da sede do vicariato de Cristo,  abusiva designação esta  que nos tem sido martelada ao longo de séculos.
         Não poderei pedir às escassas dimensões desta página intermitente a exigência de um estudo comparado das religiões. Tão-só, responder ao assalto que o relâmpago daquela frase causou dentro de mim. Será que nos subterrâneos da corrupção correm, porventura, os lençóis freáticos da religião, que lhes dá forma e fundo?... Contra factos fenecem os argumentos. E eles aí estão escancarados na via pública, em proporções diversas, sendo certo que os pesos pesados impendem sobre a Igreja, como instituição.
         Seja qual for a opinião de quem me lê, deixo aqui alguns tópicos para ulteriores reflexões. Em primeira mão, é consabido que as teses com que Lutero cimentou o seu código religioso incidiam contra o luxo e a megalomania do Papado que, a troco de dinheiro, vendia, aos talhões (ou alugava, a prazo) as mansões do Além, tal qual os que fazem contratos  promessa de  compra e venda dos terrenos da romântica lua. Excomungado, sistematizou o seu “corpus” doutrinal, integrando conceitos e valores de filósofos, seus contemporâneos, aperfeiçoada por correligionários subsequentes. Sem perder-me em longas citações, recortarei  o nobre conceito de consciência profissional, expresso  no normativo: “ O exercício da profissão é uma verdadeira ‘vocação’ (Beruf), em ordem ao bem comum”,  como soberanamente expressa Cromwel  na famosa carta, escrita em 1650  ao Longo Parlamento: ”Queiram acabar com os abusos de todas as profissões. E se houver uma que faça muitos pobres para dar origem a poucos ricos, isso não serve a comunidade”.
         Nisto converge também  a doutrina social da Igreja. E os factos?...        
Cabe aqui citar Vianna Mog, consideradas as devidas distâncias, no livro Pioneiros e Bandeirantes  (1958):  “A doutrina calvinista que dignifica a riqueza e aquele que sabe honestamente conquistá-la, está na base da superior prosperidade dos Estados Unidos… Nós parecíamos crer na  hipérbole  evangélica: ‘É mais fácil a um camelo passar pelo fundo de uma agulha  do que a um rico entrar no Reino dos Céus’. E, compadecidos dos pobres, por todo o mundo português se espalhavam as misericórdias, reveladoras da nossa caridosa humanidade --- mas também dos defeitos que a tornavam particularmente necessária, na Metrópole como no Ultramar”.
         Façamos uma pausa final. E frontalmente interpelemo-nos: “Não será que, a coberto de misericórdias e sofisticados assistencialismos, estaremos a consentir  e a multiplicar defeitos (corrupções), em vez de proporcionar a cada um o direito de recolher dignamente o fruto do seu trabalho?...  
Imperceptivelmente, o clima de corrupção torna-se tão  ou mais  danoso  que a corrupção do clima.

          11.Dez.15

         Martins Júnior

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