Imagino que o mesmo se deve passar
convosco: é que há instantâneos na vida que nos chocam como um relâmpago. E,
como um relâmpago, projectam um raio de luz tão fugaz quanto impressivo no
nosso subconsciente adormecido. Do susto inicial passamos descoberta de pistas que umas vezes confortam, outras vezes
perturbam. E interpelam-nos até à medula dos nossos conceitos ou preconceitos.
Foi
um dia destes. Atravessava eu a corredora,
quando um rádio-ouvinte da Antena
Aberta sobre o cancro da corrupção que corrói a sociedade, chama à liça o
problema religioso e, sem titubear, emite esta estranha opinião: “Quem muito
tem contribuído para o vício da
corrupção é a Igreja Católica, porque na religião luterana as coisas não se
passam assim. A educação católica ensina a devoção mas não dá a formação às
pessoas”. Parei, atónito, com o relampejar
seco desta afirmação, sentei-me e pus-me a matutar num facto que
atravessa o quotidiano dos nossos
noticiários e respectivos comentadores: enquanto entre nós, no sul, os
corruptos e corruptores continuam nos cargos e até chegam a ser promovidos, sucede que nos países nórdicos, por muito
menos, demitem-se ou são demitidos imediatamente. A história mostra que os
anglo-saxónicos optaram pelo luteranismo e, em contrapartida, os do sul-europeu pelo catolicismo, supostamente evangelizador.
Como num caleidoscópio
efervescente passaram-me pela retina as cenas dos cristãos-novos,
a Inquisição, os escritores e cientistas que tiveram de sair de Portugal e
exilaram-se na Holanda, na Alemanha, onde foram bem recebidos, caso do nosso
Damião de Góis. Logo de rompante, acudiram-se à memória as “Conferências do
Casino”, em 1871, com a famosa (e fatal
para o projecto) dissertação crítica --- Causas
da decadência dos Povos Peninsulares --- em que Antero de Quental acusa a
pusilanimidade e a dependência de Portugal e Espanha aos dogmas de Roma, em vez
da plena libertação da criatividade do espírito humano. A tudo isto chega e cai-me nas mãos, esse duplo “atentado” ao
sagrado mito do Vaticano. Refiro-me aos dois livros “malditos” --- Avareza, de Emiliano Fitipaldi e Via Crucis, de Gianluigi Nuzzi, ambos
jornalistas --- cujos testemunhos, cópias de documentos oficiais sigilosos,
denunciam a ganância e a corrupção nas entranhas da sede do vicariato de
Cristo, abusiva designação esta que nos tem sido martelada ao longo de
séculos.
Não
poderei pedir às escassas dimensões desta página intermitente a exigência de um
estudo comparado das religiões. Tão-só, responder ao assalto que o relâmpago
daquela frase causou dentro de mim. Será que nos subterrâneos da corrupção
correm, porventura, os lençóis freáticos da religião, que lhes dá forma e
fundo?... Contra factos fenecem os argumentos. E eles aí estão escancarados na
via pública, em proporções diversas, sendo certo que os pesos pesados impendem
sobre a Igreja, como instituição.
Seja
qual for a opinião de quem me lê, deixo aqui alguns tópicos para ulteriores
reflexões. Em primeira mão, é consabido que as teses com que Lutero cimentou o
seu código religioso incidiam contra o luxo e a megalomania do Papado que, a troco
de dinheiro, vendia, aos talhões (ou alugava, a prazo) as mansões do Além, tal
qual os que fazem contratos promessa de compra e venda dos terrenos da romântica lua.
Excomungado, sistematizou o seu “corpus” doutrinal, integrando conceitos e
valores de filósofos, seus contemporâneos, aperfeiçoada por correligionários subsequentes.
Sem perder-me em longas citações, recortarei o nobre conceito de consciência profissional,
expresso no normativo: “ O exercício da
profissão é uma verdadeira ‘vocação’ (Beruf), em ordem ao bem comum”, como soberanamente expressa Cromwel na famosa carta, escrita em 1650 ao Longo Parlamento: ”Queiram acabar com os
abusos de todas as profissões. E se houver uma que faça muitos pobres para dar
origem a poucos ricos, isso não serve a comunidade”.
Nisto
converge também a doutrina social da
Igreja. E os factos?...
Cabe aqui citar Vianna
Mog, consideradas as devidas distâncias, no livro Pioneiros e Bandeirantes (1958): “A doutrina calvinista que dignifica a
riqueza e aquele que sabe honestamente conquistá-la, está na base da superior
prosperidade dos Estados Unidos… Nós parecíamos crer na hipérbole evangélica: ‘É mais fácil a um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que a um rico entrar no Reino dos Céus’.
E, compadecidos dos pobres, por todo o mundo português se espalhavam as
misericórdias, reveladoras da nossa caridosa humanidade --- mas também dos defeitos que a tornavam particularmente
necessária, na Metrópole como no Ultramar”.
Façamos
uma pausa final. E frontalmente interpelemo-nos: “Não será que, a coberto de
misericórdias e sofisticados assistencialismos, estaremos a consentir e a multiplicar defeitos (corrupções), em vez de proporcionar a cada um o direito
de recolher dignamente o fruto do seu trabalho?...
Imperceptivelmente, o
clima de corrupção torna-se tão ou mais danoso que a corrupção do clima.
11.Dez.15
Martins Júnior
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