Sei
que hoje, sexta-feira, arrisco-me a ser carta fora do baralho. Deste baralho
bailado do quotidiano. Hoje, não me
detenho em nenhum trunfo, nenhum “tiro” jornalístico por mais vistosos que se
apresentem. É verdade que alguém tem de publicitar, outrem terá de comentar, os
leitores/espectadores precisam de quem lhes dê sinais de trânsito na
encruzilhada dos acontecimentos para saber interpretá-los e direccioná-los.
Mas
hoje, não. Deixo a casuística de lado, volto as costas ao foguetório das
notícias fugazes e entro na galáxia dos tempos. E sinto-me outro, siderado,
espraiado num mundo outro, o qual, sendo nosso, chega a parecer estranho. É o que acontece a quem
viaja: não tem lugar onde colocar o televisor, não tem tempo para assentar o
olhar na almofada do papel escrito. É um andar sem parar, a não ser quando se
espera pela saída do avião ou o atraso do comboio. E é aí que outros ares podem
refrescar o nosso entendimento, repousar a vista e a mente. E é aí, também, que
vêm à tona do quotidiano os estados de alma.
Peço e agradeço a paciência de partilhar comigo o estado de alma
de quem, aguardando o toque horário, entrou numa dessas bibliotecas de
circunstância a que chamam feira de livros, informal e aberta todo o ano, ali
mesmo, à mão-de-semear. Primeiro, timidamente, quase que assustado perante a
vastidão do recinto e depois, seduzido como um adolescente pelo rosto aliciante
de cada título, o seguinte mais persuasivo que o anterior. Entra-se na galáxia
de novos sóis e novos séculos. Apercebemo-nos de miríades de estrelas, gente
que povoa a amplidão do universo a que pertencemos, de quem nunca nos foi apresentado
mas está ali convidando-nos a entrar em sua casa, no seu pensamento, no seu
coração. Uns são poetas de antiquíssimas civilizações, outros dramaturgos,
outros cientistas e recriadores da vida. A ansiedade cresce - uma ansiedade
positiva que tem um misto de êxtase e nostalgia por não termos hipótese de aceitar-lhes
o convite, de nos sentarmos à sua mesa e beber, beber até à exaustão os rios da
inspiração, a história de outras vidas que, mesmo distantes, se cruzam com as
nossas. Ali se sente na pele a lógica do velho aforismo, retomado por Goethe,
no seu “Fausto”: Ars longa, vita brevis –
“a tarefa é imensa, mas a vida é tão breve”. Só de imaginar que os anos
passam e nunca teremos oportunidade de entrar em contacto com os que outrora,
ontem e hoje, nos escreveram e ainda permanecem,
aperta-nos um travo de culpa e de mágoa por não termos tido o bom apetite ou o
tempo disponível para saborearmos o maná garantido que nos foi legado, ali na
palma da nossa mão. Vamo-nos perdendo pelas esquinas do quotidiano, baralhados
entre notícias frouxas, ocasionalmente fascinantes dos casos do dia, mas que
rapidamente se esfumam na vertigem das horas. Seria preciso um nutricionista do
espírito para nos ensinar a preferir os produtos psico-biológicos que alimentam
a personalidade e nos fazem descodificar a sinalética das encruzilhadas da vida.
Apetece
ficar todo o tempo neste imenso rectângulo, até perder o comboio. Apetece
trazer num braçado festivo a herança viva dos companheiros de estrada que nos
precederam e assimilar as mensagens que ao nosso telemóvel projectam os
viajantes da nossa era.
É
certo que não nos podemos alhear do que se passa à nossa volta. Certo é, também,
pesquisar noticiaristas, opinadores, intérpretes do
actual momento histórico. Incontornável
a consulta de e-books, ipads, net e
afins. Mas é deplorável a opção do descartável que domina a cultura, até nos programas escolares que menosprezam os
mestres da nossa “Pátria – a Língua Portuguesa”. Em contrapartida, quanto nos
conforta e mobiliza ver jovens (e não são tão poucos) frequentadores estudiosos,
aprofundando o conhecimento nas salas de biblioteca!
Não era minha intenção moralizar, mas
tão-só alargar um “estado-de-alma” que
voltou a dominar-me na feira corrente da estação ferroviária. Para ser coerente
comigo mesmo, seria preferível propor a leitura de um livro essencial, em vez
da folha volante destes “dias ímpares”… Fique, ao menos, a mensagem estruturante
aqui entregue.
11.Mar.16
Martins Júnior
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