quarta-feira, 9 de março de 2016

NO DIA DE PRESIDENTES: PRESÍDIOS E PRECEDENTES


Passeasse hoje o monóculo do nosso Eça pela baixa da capital e, de novo, sentenciaria: Afinal continuamos como no século XIX, “Portugal é Lisboa, o resto é paisagem”. Nunca foi tão adejada e badalada a estreia de um Presidente da República, a sua entrada triunfal e triunfalista - com manga franciscana de poupadinha e sem jantares de gala, anunciava o anfitrião - mas  quem contasse as viagens e ajudas de custo que as centenas de convidados especiais custaram aos erários públicos de origem, a vulgarização do evento (extensão ao vulgo) e sua proletarização (concertos grátis à plebe na Praça do Município) ver-se-ia que a factura do arraial não foi assim tão modesta. Será talvez a nova imagem de marca: substituir os salões palacianos pela calçadinha das ruas e praças públicas. Em 10 de Junho, já está na agenda, Portugal será Paris e o resto paisagem.
         Presidência nova, sem dúvida, mas sempre Presidência. Não será rábula o que proponho fazer, mas anda por aí perto: desfibrar o tecido de sempre, chamado Presidente e Presidência. Tem algum interesse e não menos piada.
         Presidente (do latim praesidere=estar sentado à frente) significará aquele que agarrou a poltrona do poder e ali fica, extático, majestático, como o Filho que não se cansa “de estar sempre sentado à direita de Deus-Pai” ou como o conselheiro Acácio que lhe basta estender o braço lento para provar o seu presidencialismo autoritário. Temo-los por tudo quanto é  canto. Curtidos, anafados, guturais e ocos como latas vazias que crescem na mesma proporção do vácuo do seu cérebro. Então se têm dons clericais ou afins, mais alargados e pesados se tornam com a mitra de presidentes canónicos. Todos por junto, são os que nascem deitados para presidir sentados.
         Mas outros há que se cansam do sofá e põem-se num alvoroço de parafuso eléctrico, saltando, gesticulando, perorando, ora na aldeia, ora na capital, ora no estrangeiro, não há quem os pare, pulam num ápice da inauguração da bomba de gasóleo para os urinóis do balneário do clube e, daí, em arroubos de exaltação febril, correm ao concerto para criancinhas desfavorecidas. “Barco parado não ganha frete”, isto é, não ganha votos, comenta-lhes o povo nas traseiras presidenciais. Estes são iguais aos primeiros: presidentes automáticos que com o ruído escondem o vazio de ideias.
         Nascidos na mesma ninhada dos “eléctricos” surgem os que, elidindo o id, em vez de presidentes, tornam-se presentes. Em tudo. Ubíquos, pidescos, temerários nos juízos, nada deixam escapar ao cutelo do poder. Como zombies artesanais ou drones de fábrica, seduzem, controlam, ameaçam. E matam. Ou seja, vingam-se, saneiam quem lhes atravessa no atalho.
         Nem tudo, porém, lhes corre de vento em popa. Porque no mesmo signo etimológico de praesidens (presidente) está uma armadilha chamada praesidium (prisão). Não foi por acaso que o estreante inquilino de Belém teve necessidade de, na ultima lectio, dizer aos alunos de Direito: “A mágoa que levo é a perda da minha liberdade”. Com maior ou menor autenticidade, o facto é que o meio ecológico de um presidente é um presídio. Prisão, onde as grades são as responsabilidades, por onde entra o ar puro do interesse público, aquele  bem-estar  que lá fora espera  a população constituinte, autora do seu mandato. Por isso, todo o verdadeiro presidente deveria aspirar àquele horizonte de que falava Gilbert Cesbron: “A minha prisão é um reino”. Se assim não for, aguarda-o uma outra prisão, essa humilhante, como se tem visto nalguns casos bem conhecidos.

         Poderia encerrar esta digressão pela galeria de presidentes, aproximando a popular expressão precedente, a qual, parecendo uma corruptela de linguagem, acaba por encerrar um sério aviso a quem alcança o patamar superior da governação, seja local, regional ou nacional. Na sua raiz originária, preceder, ao mesmo tempo que indica prioridade, significa também ceder o lugar (cedere, do latim) afastar-se. Sem mais delongas, o aviso aos presidentes é aquele a que já me referi em  circunstâncias idênticas - a canção do “SG gigante” (Sérgio Godinho, como o cognominou o Prof. Arnaldo Saraiva): “Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida”. Da tua vida de presidente. Queira ou não queira, o senhor precedente terá, um dia, de dar o lugar a outro.
09.Mar.16
Martins Júnior

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