Eu
sei que todos os dias são livros abertos na tumba de quem nos diz adeus. E
muitos têm sido neste início de ano bissexto. Cada um com a marca distintiva da
sua proximidade da nossa casa, do nosso ofício, do nosso peito. E quanto mais o
tempo passa mais se aviva a necessidade de trazê-los connosco. Não para entronizá-los,
mas para fortalecer-nos.
Por
este necessário apelo interior, não posso deixar de chamar ao meu/nosso
convívio aquele SENHOR que atravessou quase anónimo as veredas e atalhos desta
ilha - o Padre Eduardo Freitas do Nascimento. Faz
amanhã um mês que deixou numa tumba
humilde de Santana o livro aberto de uma vida. Das suas múltiplas funções e não
menos extensos serviços, já escreveu na imprensa diária José d’Olim, numa
linguagem de fino recorte literário e humanista. Por isso, da minha parte,
limitar-me-ei a saborear o companheirismo de um colega e amigo que, na década
de 60 do século passado, criou as novas centralidades de Piquinho, Preces, Ribeira
Grande e Maroços, no Machico mais profundo, corporizando a sábia intuição do Prelado
David de Sousa de descentralizar o monopólio das igrejas urbanas e conferir a
autêntica autonomia aos habitantes da ruralidade, até então abandonados nas
periferias montanhosas da ilha, sem estatuto de cidadania e, pior, desprovidos
dos bens indispensáveis à dignificação da condição humana.
Neste âmbito, guardo de fresco na
memória visual o vigor denodado do Padre Nascimento em abrir caminhos onde as pessoas
viviam no mais cru isolamento, captar água pura das nascentes para acabar com
as viroses que não poucas vezes minavam os rurais que se abasteciam da água das
levadas. Ele, entre Preces e Maroços, e o seu colega conterrâneo, Padre Manuel
de Freitas Luís Júnior, na Ribeira Seca. Nessa altura, o padre era pastor,
pedreiro, servente, mestre de obras, engenheiro, assistente social, curador de
corpos e almas. Tempos duros! Lembro-me
da sua coragem em alcançar outros continentes, estendendo a mão aos emigrantes
madeirenses lá residentes para poder construir as igrejas de Piquinho e Ribeira
Grande. Falo dessa luta (hoje ninguém a conhece) porque também me toca de
perto. Corria então o ano de 1962 e o Padre Nascimento pediu-me que eu,
recém-ordenado sacerdote, o substituísse nas tarefas paroquiais e de que guardo
sentidas recompensas de afecto e camaradagem para o resto da vida.
Percorreu
as “sete partidas” da Madeira em várias paróquias e, num certo dia, vi-o
confidenciar-me a pouca consideração pela sua já debilitada situação etária com
que a hierarquia eclesiástica lhe impunha serviços e deslocações que a saúde não lho permitia.
“O
herói serve-se morto” - rigorosa expressão do grande poeta Reinaldo
Ferreira, o mesmo da balada do “soldadinho que volta numa caixa de pinho”, referência aos soldados mortos na crudelíssima
guerra colonial.
Também
o Padre Nascimento foi herói “servido morto” à mesa da hierarquia eclesiástica que
o sugou até ao tutano e depois abandonou-o num canto anónimo, como ele, da
Terceira Idade. Partiu-se-me o coração quando fui visitá-lo e deparei-me com um
corpo frágil amarrado a uma cadeira no meio de tanta gente decrépita,
deprimida. O trato na casa era exemplar em higiene, alimentação e cuidados. Mas
aquele crucificado de olhar longínquo naquele, para mim, degradante figurino
(embora por precaução médica) bateu-se-me como pedrada no peito, imagem que
jamais apagarei da minha retina.
A
memória torna-se repulsa, indignação, ao constatar aquilo que já vem de longe:
a Igreja na Madeira trata, como senhoria,
os seus padres enquanto eles têm para
dar. Depois porta-se como madrasta desnaturada. E pensar que determinada
habitação, no Funchal, foi legada por alguém, precisamente, para servir de
última residência aos sacerdotes anciãos da diocese – e saber que o bispo “emérito”
fez dela a sua exclusiva mansão – então a indignação atinge o cúmulo da
revolta!
Merece uma aprofundada e exigente reflexão a
constatação deste caso.
Mas
não quero desviar-me deste que considero
um dever e um conforto pessoal: trazer para a minha/nossa companhia um herói. Vivo!
Imperativo! Ele não precisa, como nunca precisou nem procurou os louros dos palcos transitórios.
Nós é que precisamos vê-lo e segui-lo na
sua luta porfiada e consequente. Para ele, o amigo de peito, poderia
inscrever-se na sua lápide a filosofia do eloquente provérbio árabe: A primeira
recompensa do dever cumprido é ter cumprido esse dever”.
17.Mar.16
Martins Júnior
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