segunda-feira, 5 de setembro de 2016

COMO SE FAZ UMA SANTA? As fomes emergentes e as fomes duradouras


        Os prelos de todo o mundo e as televisões de todas as cores rivalizaram em gordura gráfica para proclamar a grande nova: “Madre Teresa de Calcutá já é santa. A partir de ontem, 4 de Setembro/16”! Permitir-me-ão discordar em absoluto das manchetes mundiais. Porque ela já o era desde há muito, muito tempo. O que ontem ocorreu foi um festival sacro-profano, a que não faltaram governantes internacionais, sendo mais visível o rosto de presidente da Albânia, terra natal de Mãe-Teresa, apóstola das Índias mais periféricas da sociedade asiática. Nada aconteceu de singular nem astronómico que viesse emoldurar a face daquela mulher franzina, modesta e furtiva, cujo único desejo era fazer o bem e passar desapercebida por entre as bátegas da publicitária chuva mundana.
         Também me associo e intimamente congratulo-me pela Santa que ela era e não tanto pela santa que lhe chamam desde ontem. Ela própria é que me deu  o argumento justificativo quando colocou como palavra de ordem dos seus ideais. “O AMOR EM ACÇÃO”. Sob este ponto de vista, o Amor é movimento criador, é corporização, é dinâmica. Nunca poderá ser extático, passivo ou acomodatício.  O Amor não se demonstra – mostra-se. Detesta o trono e ama o chão rasteiro onde nasce, sangra e pulula a Vida. Leiam o capítulo 13 da II Carta de Paulo aos Coríntios. Que beleza, que frescura  e que eloquência ecológica se desgarra do texto Paulino que costumo seguir nas celebrações   de casamento e que enche a alma de quantos nelas participam! O Amor feito estátua ou talismã  não é mais que idolatria. Relembro Antero de Quental: “Na grande marcha da História o Santo é o que vai à frente”. Na frente do esforço, na vanguarda da luta, da intuição, enfim, é “o que vê o invisível”. E avança decidido.
         Mais um desabafo. E vale o que vale: Não me entusiasmam nem comovem esses arroubos apoteóticos, soberanamente proclamatórios das canonizações. Pelo que acima referi. E mais: Que dom de infalibilidade possui um homem para julgar outro homem e considerá-lo santo ou pecador?... Acresce  o emaranhado processo  miraculoso, de duvidosa força probatória, dado que o denominado “milagre” (condição sine qua non) assenta em pressupostos intimistas,  fortemente associados à conjuntura neuro-vegetativa do feliz contemplado com o “milagre”. Mãe-Teresa, venero-a e amo-a não pelos milagres feitos depois de morta, mas pelos que  fez em vida. A sua indomável tenacidade que não temia os obstáculos, alguns até vindos da própria hierarquia eclesiástica no início da sua actividade, a limpidez do olhar que descortinava a presença do Mestre no mais ínfimo do ser humano e que a levou  a entregar-se incondicionalmente aos indianos pobres e aos leprosos de Calcutá, as centenas de casas para os sem-abrigo e para doentes terminais, , orfanatos, hospícios, enfim, procuro as pegadas luminosas dos seus passos que galvanizavam multidões e “seduziram” milhares de obreiros para a sua causa. Curvo-me rendido à sua predilecção  para com os desfalecidos que  morrem abandonados na berma das estradas. Tudo isso ela realizou em vida sem esperar um panteão na basílica vaticana,  nem sequer o Nobel que lhe foi justamente atribuído pela Academia em 1979. Tudo isso fez J:Cristo e o seu trono foi o patíbulo,  a cruz  da ignomínia.
         E é também por tudo isto que me comovo – e não pelos 70 cardeais, 400 bispos e 1.700 padres que participaram na solene  glorificação de ontem, mais os 13 chefes de Estado e as 22 delegações estrangeiras. E por mais este testemunho do Papa Francisco: “Ela fez sentir a sua voz aos poderosos da terra para que reconheçam as suas culpas perante os crimes da pobreza criada por eles próprios”.
É neste 2º item que pretendo debruçar-me no próximo dia ímpar. E é por aqui que surgem apreciações menos optimistas em relação a Madre Teresa elaboradas por biógrafos seus, acusando-a de estar a defender o status quo de regimes injustos. A caridade, dizem os entendidos teólogos, não pode antecipar-se à Justiça. Não basta acudir às fomes emergentes. É preciso debelar as fomes duradouras. Desde a sua origem.
         O “Amor em Acção” toma vestes tão diversas umas das outras, mas está sempre vigilante para que a Justiça vá à frente, tal como o “Santo”,  de Antero de Quental,  na vanguarda da  grande  marcha da História. Há muito mais santos cá fora do que  os que têm assento oficial  nos altares.

05.Set.16
Martins Júnior

  

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