Os prelos de todo o mundo e as
televisões de todas as cores rivalizaram em gordura gráfica para proclamar a
grande nova: “Madre Teresa de Calcutá já
é santa. A partir de ontem, 4 de Setembro/16”! Permitir-me-ão discordar em
absoluto das manchetes mundiais. Porque ela já o era desde há muito, muito
tempo. O que ontem ocorreu foi um festival sacro-profano, a que não faltaram
governantes internacionais, sendo mais visível o rosto de presidente da
Albânia, terra natal de Mãe-Teresa, apóstola das Índias mais periféricas da
sociedade asiática. Nada aconteceu de singular nem astronómico que viesse
emoldurar a face daquela mulher franzina, modesta e furtiva, cujo único desejo
era fazer o bem e passar desapercebida por entre as bátegas da publicitária chuva
mundana.
Também
me associo e intimamente congratulo-me pela Santa que ela era e não tanto pela
santa que lhe chamam desde ontem. Ela própria é que me deu o argumento justificativo quando colocou como
palavra de ordem dos seus ideais. “O AMOR EM ACÇÃO”. Sob este ponto de vista, o
Amor é movimento criador, é corporização, é dinâmica. Nunca poderá ser
extático, passivo ou acomodatício. O
Amor não se demonstra – mostra-se. Detesta o trono e ama o chão rasteiro onde nasce,
sangra e pulula a Vida. Leiam o capítulo 13 da II Carta de Paulo aos Coríntios.
Que beleza, que frescura e que
eloquência ecológica se desgarra do texto Paulino que costumo seguir nas
celebrações de casamento e que enche a
alma de quantos nelas participam! O Amor feito estátua ou talismã não é mais que idolatria. Relembro Antero de
Quental: “Na grande marcha da História o Santo é o que vai à frente”. Na frente
do esforço, na vanguarda da luta, da intuição, enfim, é “o que vê o invisível”.
E avança decidido.
Mais
um desabafo. E vale o que vale: Não me entusiasmam nem comovem esses arroubos
apoteóticos, soberanamente proclamatórios das canonizações. Pelo que acima
referi. E mais: Que dom de infalibilidade possui um homem para julgar outro
homem e considerá-lo santo ou pecador?... Acresce o emaranhado processo miraculoso, de duvidosa força probatória, dado
que o denominado “milagre” (condição sine
qua non) assenta em pressupostos intimistas, fortemente associados à conjuntura
neuro-vegetativa do feliz contemplado com o “milagre”. Mãe-Teresa, venero-a e
amo-a não pelos milagres feitos depois de morta, mas pelos que fez em vida. A sua indomável tenacidade que
não temia os obstáculos, alguns até vindos da própria hierarquia eclesiástica no
início da sua actividade, a limpidez do olhar que descortinava a presença do
Mestre no mais ínfimo do ser humano e que a levou a entregar-se incondicionalmente aos indianos
pobres e aos leprosos de Calcutá, as centenas de casas para os sem-abrigo e
para doentes terminais, , orfanatos, hospícios, enfim, procuro as pegadas
luminosas dos seus passos que galvanizavam multidões e “seduziram” milhares de
obreiros para a sua causa. Curvo-me rendido à sua predilecção para com os desfalecidos que morrem abandonados na berma das estradas. Tudo
isso ela realizou em vida sem esperar um panteão na basílica vaticana, nem sequer o Nobel que lhe foi justamente
atribuído pela Academia em 1979. Tudo isso fez J:Cristo e o seu trono foi o
patíbulo, a cruz da ignomínia.
E
é também por tudo isto que me comovo – e não pelos 70 cardeais, 400 bispos e
1.700 padres que participaram na solene glorificação de ontem, mais os 13 chefes de
Estado e as 22 delegações estrangeiras. E por mais este testemunho do Papa
Francisco: “Ela fez sentir a sua voz aos poderosos da terra para que reconheçam
as suas culpas perante os crimes da pobreza criada por eles próprios”.
É neste 2º item que
pretendo debruçar-me no próximo dia ímpar. E é por aqui que surgem apreciações
menos optimistas em relação a Madre Teresa elaboradas por biógrafos seus,
acusando-a de estar a defender o status
quo de regimes injustos. A caridade, dizem os entendidos teólogos, não pode
antecipar-se à Justiça. Não basta acudir às fomes emergentes. É preciso debelar
as fomes duradouras. Desde a sua origem.
O
“Amor em Acção” toma vestes tão diversas umas das outras, mas está sempre
vigilante para que a Justiça vá à frente, tal como o “Santo”, de Antero
de Quental, na vanguarda da grande marcha da História. Há muito mais santos cá
fora do que os que têm assento oficial nos altares.
05.Set.16
Martins Júnior
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