Não
uma voz qualquer. Mas um grito de alerta, corajoso e vibrante, com o peso do Catedrático
de Direito e a Autoridade suprema da Casa das Leis. Essa voz continua viva,
ecoando nos areópagos do Poder Central, nas assembleias dos Poderes Regionais e nos gabinetes de todos os
Executivos. Numa altura em que tanto se
fala das competências dos poderes locais a propósito das escolas, da saúde, do
ordenamento florestal para fazer face à praga dos incêndios, é urgente voltar a
escutar o que decididamente defendeu o Prof. Barbosa de Melo no VII Congresso
da Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP) em 1992.
Deixou este país há oito dias. Têm-no
exaltado as figuras gradas da política e da intelectualidade, realçando-lhe os
mais altos predicados no domínio da ciência
jurídica, do Direito Administrativo, da robustez cívica e moral. Tudo merece o Prof. Barbosa de Melo.
Da minha parte, sublinharia o trato gentil e coloquial com que me recebeu em
sua casa, em Coimbra, deliciando-me com a
“a satisfação de estar – assim dizia - com o irmão do
meu querido e ilustre colega, o Prof. Dr. João Manuel Martins”, nessa altura
Juiz presidente do Supremo Tribunal Administrativo de Moçambique.
É meu dever, porém, ascender a um
patamar mais alto e aí revelar e relevar o sonho do Mestre Jurista. Mais que sonho, era a sua paixão,
uma espécie de desígnio gémeo da própria vida: o Poder Local. Não por mero acaso,
mas pelo “saber de experiência feito” no difícil terreno das autarquias. O
Prof. Barbosa de Melo tinha sido autarca no seu concelho, Penafiel. E muitas
vezes lhe ouvia dizer com insistência aquele normativo que outros depois dele adoptaram:
“Nenhum político dos Poderes Central ou Regional devia ocupar tais lugares sem
primeiro ter passado pela experiência autárquica”.
Mas ainda não é esta a pedra de toque
legada pelo Professor ao país. É outra, que passo a enunciar:
Realizava-se no Funchal o VII Congresso
da ANMP, entre 7 e 9 de Maio de 1992, no qual tomei parte como presidente do
Município de Machico. Sensatas e ricas de pensamento dinâmico, duramente reivindicativo, foram as
intervenções dos muitos autarcas de todo o Portugal ali presentes, em defesa da
autonomia do Poder Local, pondo em aceso debate a dialéctica sempre inconclusa entre
o centralismo teórico da governação e a especificidade vivencial de quem está
próximo da população, o poder autárquico: assembleias, câmaras, juntas de
freguesia. Na Madeira, essa questão ardia em lume vivo. Muito timidamente
alguns autarcas madeirenses lá iam desfilando contidas e dissimuladas lamúrias sobre a forma como o governo regional tratava
assuntos que jurisdicionalmente lhes
pertenciam. Era o tempo em que o Governo
Regional foi coagido a pagar coercivamente as dívidas contraídas junto do
Governo Central, então chefiado por Cavaco Silva. Daí nasceu o horroroso Protocolo de Reequilíbrio Financeiro,
por força do qual o presidente do GR obrigou as câmaras, mesmo as do seu
partido, a pagar tais dívidas. Concretamente,
os municípios foram privados de grande
parte das verbas a que tinham direito do OE, só para pagar as obras inauguradas
pelo presidente madeirenses. Esse e outros abusos fizeram-me subir à tribuna e,
desassombradamente, denunciar: “Na Madeira só há uma única autarquia: a que
está sediada na Quinta Vigia. O resto são meras dependências dela”.
Mas a que propósito vem aqui o Prof.
Barbosa de Melo?
Já o digo. Para a sessão de
encerramento, fora convidado o Presidente da Assembleia da República. Quem?
Precisamente Barbosa de Melo. Era enorme a expectativa de todos os
participantes, aguardando ansiosamente a posição da segunda figura do Estado Português sobre a
matéria conflituante governo-autarquias, uma questão particularmente delicada
em solo madeirense.
E eis que surge o Mestre do Direito
Administrativo e Presidente da AR. Depois ter delineado os contornos jurídico-constitucionais
do problema posto, desata energicamente na defesa da autonomia do Poder Local,
critica eventuais intromissões dos poderes centralistas na jurisdição das
autarquias e remata com esta proclamação gigante, que despoletou um turbilhão
de aplausos em todo o recinto: “Nenhuma
decisão deverá ser tomada pelos Governos nem nenhuma obra realizada na área
do concelho sem o conhecimento e a prévia
apreciação da autarquia respectiva”.
Foi, sem dúvida, o melhor troféu
oferecido aos autarcas portugueses pelo presidente da Assembleia da República.
Era o tempo em que não havia regras para a concessão de apoios financeiros aos
municípios. Recordo o anátema do Autarca-Mor da Vigia quando sentenciava. “Para
Machico nem um tostão”. Era o tempo em que não me doía a voz denunciando, até
em Bruxelas, que no Comité Europeu das
Regiões e Municípios, a Madeira fosse representada por uma só pessoa, o
presidente da Região, precisamente o maior adversário das autonomias municipais.
É esta a imagem soberana que guardo do
Grande Mestre. A sua dignidade, o seu rigor e, absolutamente, a sua coerência.
Outros guardarão memórias diversas, mas esta constitui o legado mais decisivo
numa terra tão escassa de território e tão desmedida de tiques centralizadores
que ameaçam trazer à tona cadáveres há muito naufragados.
13.Set.16
Martins Júnior
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