Em
fim de verão e com o abrandamento das temperaturas quentes que o caracterizam,
queimam-se os últimos morteiros e esfumam-se as euforias das festas, festivais e arraiais , tão férteis como
cogumelos sobrepostos neste pedaço de
poio que é a ilha, povoada de lendários patronos e divertidas padroeiras. Só
não esmorecem, neste entardecer de estio, aquelas iniciativas nascidas do húmus original da
terra-madre. Por que é o seu Povo quem as organiza.
Para sintetizar esta evidência não
vejo melhor súmula, nem mais expressiva, como o refrão de uma cantiga, de há décadas cantada e coreografada, no sítio suburbano onde habito:
Na festa que o Povo organiza
Há mais alegria e verdade
Por isso trazemos a estrela
A estrela da felicidade
Neste fim de semana aí navegam
em cardume festas, arraiais e festivais,
cada terra com seu uso como roca com seu
fuso. E então é ver o patriotismo bairrista de mordomos e festeiros rivalizando
em luxo, arrebitados em estrondo ou descobrindo “cabeças de cartaz”, de bom ou
mau gosto não importa, desde que peçam mais uns “milhes” pela actuação.
Da minha parte, ouso partilhar aqui a
minha predilecção por tudo quanto emana dos genes endémicos das populações. E é
nos meios rurais e suburbanos que se aquece o coração na chama da produção
popular, quer cantada e rimada, espontânea ou ensaiada, quer ainda na evocação
da história local, suas raízes e tradições litúrgicas ou artesanais. Quanto me
divertem e ensinam os despiques populares, não os empolados em palcos concursais, mas os
de rua junto às barracas - genuínos discursos dos romeiros pedestres, em que a
pitada de humor picante se mistura com adágios da sabedoria de antanho,
transmitidos na oralidade de gerações e a que o rajão, a rebeca e o pandeiro
dão ritmo e pesponte inigualáveis. A riqueza poética das gentes rurais, a dada
altura, fez-me puxar
da viola e do acordeão e dar corpo cantante às rimas de redondilha maior que
camponeses e camponesas me traziam à mão.
Foi-me doada por circunstâncias
fortuitas a graça – sublinho graça enquanto dom gratuito – de “cair” num ambiente marcado por esta identidade telúrica,
pura e livre, ainda não deturpada pelas tais megalomanias “estrangeiradas”, requentadas, besuntadas de verniz mal
cheiroso e em que o opulência de
dinheiro é proporcionalmente inversa à cultura, à “alegria e à verdade das
festas que o povo organiza”. Desde há quase cinquenta anos que me é concedida
esta dádiva, que se fez maior por ter-me proporcionado a oportunidade de ver a
diferença entre festas, arraiais e festivais.
Mais uma vez neste fim de semana,
serei parte deste “caldo” preparado
pelas mãos calejadas de um “Povo/ um Povo que trabalha e faz o mundo novo”. Quem aqui vier, sábado e domingo, fruirá por
certo da fragrância emanescente dos nossos campos, da autenticidade ornamental
do nosso recinto de festas, onde é fresco e natural. Verá desfilar a candura das crianças, o viço da juventude e a feliz serenidade dos
adultos, interpretando em palco as tradições laborais traduzidas em verso e
ritmos dançantes: o Tear, as Vindimas, a Paisagem , a Colonia, a Emigração, os
picos altos e as árduas lutas que este Povo viveu e vitoriosamente ultrapassou.
Páginas gloriosas de Machico, desde a primeira hora, perpassarão diante dos
nossos olhos. A nossa Tuna, remoçada agora com jovens executantes, será o abrir das cortinas
da nossa Festa, que do Amparo se chama.
Momento de rara emoção será o da “revisitação” da
velhinha Capela do Amparo, mandada erigir por Francisco Dias Franco em 1692 no próprio coração do sítio da
Ribeira Seca. Ali juntar-se-á a comunidade para sentir o percurso sofrido dos
seus antepassados, desde há 324 anos. Subir à Capelinha do Amparo é fazer uma
peregrinação mais longínqua que ir a Fátima, a Lourdes, à Aparecida do Norte,
no Brasil. Muito antes dessas, a Senhora do Amparo já era!
Reconstituir o “sangue, o suor e as
lágrimas” que as altas montanhas do Vale da Ribeira Seca outrora viram correr
será o mote de esperança e de coragem perante o futuro, calcorreando as novas
estradas até alcançar o templo actual. Passado, Presente e Futuro – eis o GPS
do nosso cortejo, com início às 16 horas de domingo.
A festa em que o Povo não ocupa a
centralidade da inspiração e da acção não poderá ser nunca a “Festa do Povo”.
Sentimo-nos bem assim. Mesmo sem parangonas publicitárias, sem estouros
piroténicos, (ajudámos as vítimas dos incêndios) e sem estrelas convidadas, a
Festa é nossa. E de quantos nela querem participar e conviver, ”se vierem por bem”.
Volto à terra e seu uso, à roca e seu
fuso. Mas, respeitando a roca, a terra, o uso e o fuso, não me cabe na testa
como é possível estampar na primeira página de um matutino a vistosa notícia de
que um determinado cantor (para mim e para muitos, “pimbalheiro” já gasto) que vem à
festa de uma determinada freguesia rural “para manter a tradição”. Mas, qual tradição?... O mínimo que se pode dizer
é exclamar: É obra!
Fiquem todos com todas as “estrelas”
do Mundo, cadentes e não cadentes. Nós ficamos com a Estrela da Felicidade, Porque nas festas que o Povo organiza, há mais Alegria
e Verdade.
09.Set.16
Martins Júnior
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