Considerem
uma vulgar crónica do quotidiano aquilo que vou contar. Mas para quem penetra o
invólucro das coisas banais encontrará mais do que o linguajar do quotidiano.
Pelo contrário, descobrirá raízes centenares
que ultrapassam todos os circunstancialismos
aparentes e tocará com os seus dedos a vastidão do passado e a lonjura do
futuro. É o que me proponho fazer.
Não
tenho melhor introdução que o subtítulo em epígrafe. Todo o Povo tem a sua
história. Longa ou breve, todos a têm. E quantas vezes é um Povo pequeno (ou o
que o mundo assim considera) quem tem uma história maior! O que há – copiando Fernando Pessoa no
paralelismo que fez da Vénus de Milo e do binómio de Newton – o que há é pouca
gente que dê por isso. E isso, para mal de todos, é o que corre na praça.
Particularmente nas festas populares, em que se esgota o ritual na vulgaridade,
no estouro ululante a afrontar as
orelhas dos mortais e as nuvens quietas,
enfim, a alienação suave como droga leve que não mata mas anestesia as multidões.
Na
mensagem anterior anunciei um dos momentos altos de um Povo que o mundo ignaro
considera povo baixo. A anunciação da Festa neste rincão suburbano de Machico contou
com milhares de olhos - e oxalá tivesse penetrado na mente de quem dela teve
notícia.
Cumpriu-se
a História – com maiúscula! – a deste
Povo rural que há 324 anos viu
alevantar-se o seu monumento mais apelativo, na altura polo aglutinador de uma
comunidade de “servos da gleba” curvados ao jugo dos senhorios: foi a vetusta Capela
da Senhora do Amparo, mandada construir por Francisco Dias Franco nos idos de
1692. Diante do alçado frontal do pequeno templo, foi exaltado o património
cultual da população da Ribeira Seca que, por ser tricentenário, está acima da pré-centenária Cova da Iria e das bicentenárias Senhora de
Lourdes, em França, e Senhor dos
Milagres, em Machico. Não é, portanto, a gordura das superstições ou a
manipulação das gentes que torna grande um Povo, no seu significado mais íntimo
e num passado comum, como direi no final deste texto.
Mas
a Festa cumpriu-se. Com descontracção e júbilo, mas também com conhecimento. No
discurso da celebração litúrgica, o Padre
Mário Tavares Figueira, historiou o
lugar do Homem na visão holística do mundo, a partir da sensibilidade
universalista do “Guardador de Rebanhos”.
No palco, também se cumpriu a História, no espectáculo de crianças, jovens e adultos desfilando as cantigas e bailados originais,
evocativos dos passos mais marcantes da vida deste Povo.
Mas não se ficou por aqui o guião existencial
dos habitantes da Ribeira Seca.
Recordou-se a época de Quinhentos, nos alvores do povoamento, quando neste
vale, incrustado no grande vale de Machico, se desenvolveu o cultivo da matéria
prima para colorir os tecidos. É então aqui que surge o nome de um famoso comerciante
italiano, Paulo da Noia, que fez proliferar
as plantas produtoras do pastel, afim de
proporcionar matéria-prima para a indústria tintureira. Era produto de luxo e tão
próspero o negócio que o próprio Rei D: Manuel I incidiu tributos avultados, por parte de
Paulo da Noia, em benefício da Coroa.
Para surpresa geral, tive oportunidade
de desenhar perante a população presente este tríptico sócio-económico-cultural
– Paulo da Noia, pastel, indústria tintureira – fazendo-o coincidir com a nomenclatura,
desde tempos imemoriais, de três sítios da Ribeira Seca: a Noia, o Pastel e o
Tintureiro, todos justapostos na zona nor-nordeste do território “ribeirense”.
As reminiscências ainda vivas da era de Quinhentos e a memória tricentenária da
Capela do Amparo, orago da actual circunscrição religiosa da Ribeira Seca, vieram sobredoirar a Festa, subvencionando aos
participantes, a par da alegria contagiante, um acréscimo cultural de
imprescindível relevância para a psicologia de um Povo que, embora pisado e
excluído da roda dos grandes, tem um passado maior, no seu conteúdo factual ,
mas sobretudo como estímulo para as
gerações de hoje e de amanhã, afim de continuarem a escrever as páginas do
Futuro, assim como as gerações de outrora deixaram escrita a História que nos
foi legada.
Mais
uma vez, no Ano CCCXXIV cumpriu-se a História!
E
voltaremos a cumpri-la no Ano CCCXXV, a próxima Festa do Amparo, em 2017.
11.Set.16
Martins Júnior
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