Admirável
Mundo Novo! – o grito de espasmo e de espanto sai-nos da boca quando diante dos nossos olhos
se abrem os prodígios da tecnologia presente e futura. Mas hoje, 15 de
Setembro, o título proclamatório de Aldous Huxley volta-se-me ao contrário e expande-se, iluminado, por
sobre a paisagem do passado. Mais precisamente na
grande passagem de nível entre o século XVIII e o Século XIX. Alguém,
porventura, expirará um enfadonho bocejo: “Que mau gosto esse de estagnar nas charnecas
do antigo”… Pura engano, digo eu. Romper por entre as brumas do tempo esquecido,
como quem desbrava uma floresta espessa e intransponível, para ao fim descobrir
mundos e personagens tão iguais às nossas, com a mesma “ânsia de subir e maior
cobiça de transpor”, diria Goethe, - é uma aventura magnífica, dolorosa na sua
marcha mas infinitamente compensadora.
A
lâmpada acesa desta introdução tem a ver com o encerramento das comemorações do
250º aniversário do nascimento desse
fulgurante talento sadino que dá pelo nome de Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805) efeméride solenemente assinalada
em Setúbal, sua cidade natal, durante o ano inteiro. A esta luz convido-vos a
rasgar as trevas de quase três séculos de história. Chamo-lhes trevas porque,
de verdade, muitas foram as legiões de zombies
agoirentos que quiseram estrangular a memória gloriosa de um dos maiores poetas
de Portugal e enterrá-lo definitivamente nas masmorras de onde não mais se via o sol.
Estou
a falar do grande poeta sadino, talentoso sonetista, na esteira de Camões, o
qual a uma cultura pós-clássica de fino quilate aliava a polivalência criativa
reservada aos espíritos superiores. Bocage juntava, com a mesma elegância e mestria,
o lirismo pré-romântico e a azagaia satírica, verrinosa, contra o Ancien Régime da época da Inquisição ao
serviço da prepotência monárquica. Por isso, tanto o malsinaram e apedrejaram,
tendo de sofrer por várias vezes as algemas da cadeia do Limoeiro, em Lisboa. E
de cada vez que saía, sobrava-lhe mais coragem para impetuosamente assestar as
farpas da crítica contra os ditadores de então. Quiseram destruir a sua obra,
mas o que apenas conseguiram foi catalogá-lo como um vulgar arruaceiro,
contador de anedóticas obscenidades. Mas hoje, ei-lo reincarnado e redivivo no seu fulgor original.
Pena que não o conheçamos no seu verdadeiro esplendor.
Mas
para nós, gentes de Machico, Bocage não se confina às margens do rio Sado que
banha Setúbal. Ele passa por aqui, pela nossa baía. Mas como? – estacarão os
que consideram o passado um fóssil sem nome. Aí está o “admirável mundo novo”
essa aventura de redescobrir-nos a nós próprios na evocação dos nossos maiores.
É que Barbosa du Bocage, oriundo embora da burguesia francesa, cruzou-se com um
jovem de Machico, de origens humildes, chamado Francisco Álvares de Nóbrega.
(1773-1806). A antonomásia por que é
conhecido – “Camões Pequeno” – esconde (e, ao mesmo tempo, desvenda) o enorme
pensador, filósofo, tradutor, satírico e, acima de tudo, o exímio cultor do
soneto, género em que mais se notabilizou. Álvares de Nóbrega, também ele, aqui
na ilha, precursor e bandeirante dos ideais da Revolução Francesa – Liberdade,
Igualdade e Fraternidade – coube-lhe seguir as mesmas pisadas de Bocage,
arrastando nos pés os grilhões das masmorras do Limoeiro. Aí conheceram-se, companheiros
da mesma cela insalubre, “esta estância abjecta”, como ele próprio escreve. Aí tornaram-se amigos e, mais tarde, fora da
prisão trocaram dedicatórias que ainda hoje perduram. Deixarei para a semana do
“30 de Novembro” a reevocação do “Nosso Camões”.
Hoje,
quero relembrar um acontecimento notável ocorrido em 30 de Maio de 2007, na própria
cadeia do Limoeiro, (actualmente sede do CEJ, Centro de Estudos Judiciários) onde foi
selada, de forma condigna e bem merecida, a geminação entre a nossa “EFAN – Estudos Nobricenses” e a “Associação
Bocageana de Setúbal”. Foi uma data inesquecível, plena de poesia, canto e
imagens: de Setúbal, veio uma distinta representação de músicos, professores e
historiadores, chefiada pelo abalizado investigador, Dr. Daniel Pires. Da
Madeira, lá estivemos muitos amigos e cultores do nosso poeta, uns cá de
Machico e outros, muitos outros madeirenses residentes em Lisboa. Recordo a
especial participação do grande admirador e declamador, o amigo Alexandre
Aveiro, que emprestou a voz e a
expressiva interpretação aos sonetos de Francisco Álvares de Nóbrega, enquanto os
setubalenses se encarregaram da idêntica tarefa em relação a Barbosa du Bocage. A foto assinala a
assinatura do Protocolo de Geminação na mesmas instalações da cadeia do
Limoeiro: Daniel Pires, pela Associação Bocageana e, pela “EFAN”, Martins
Júnior.
Seria impossível ver passar este 15 de
Setembro sem abrir as janelas do espírito e deixar entrar no SENSO&CONSENSO o abraço luminoso desses dois astros da
literatura incarnada na acção e na luta por um mundo melhor, esse almejado “Admirável
Mundo Novo” que nos incumbe hoje
construir, com o mesmo afã e a mesma resistência que eles investiram no seu tempo.
Termino com um dos sonetos que Francisco Álvares de Nóbrega dedicou ao
companheiro de desditosa cela, Manuel Maria Barbosa du Bocage.
“Versos que produzi, Cantor do Sado,
Ao tenir do grilhão áspero e duro,
Em cadafalso infame, hórrido, escuro,
A diversas paixões abandonado,
Vão, como os teus, em tempo desgraçado,
Ministrar novo pasto ao Zoilo impuro,
Com o fito mais no apoio do futuro,
Que no abrigo no presente às Musas dado.
De aparatoso adorno vão mendigos,
A mais alto remonto não se atrevem,
Macerados de aspérrimos castigos.
Dá que também teu nome exímio levem:
Os
génios hábeis da razão amigos
Esta
homenagem uns aos outros devem”.
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15.Set.16
Martins Júnior
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