Ainda
pairam nos céus de Roma os ecos em revoada daquela manhã sonora de domingo.
Nunca a modesta rapariga albanesa teria imaginado que as chagas sociais e as
dores dos proscritos que ela ajudou a sarar ascendessem tão alto e tão sonante
como no dia aniversário da sua descida às terras dos párias e dos marajás.
E
chegaram até nós. Tenho seguido com interesse as opiniões que suscitou o meu
último escrito. Bom sinal dos tempos, quando se interpretam e discutem temas
tão marcantes como a canonização de alguém. Ao relevar a magnitude da obra de
Madre Teresa de Calcutá, pretendi saudar o empenho pessoal, a doação inteira
dessa mulher à nobre causa da Humanidade. No entanto sublinhei que, também na
mesma medida, é urgente analisar os
gritos e as fomes que perseguem o mundo,
acentuando a dicotomia emergentes versus duradouras.
É a diferença que nem sempre descortinamos entre pobreza conjuntural e pobreza
estrutural, sendo certo que as soluções para estas últimas não podem ser as
mesmas utilizadas para as primeiras. O que está em aceso debate é a eterna
antinomia de sempre entre Caridade e Justiça. É verdade que não se prega a
estômagos vazios, mas não é menos verdade que os paliativos de circunstância
não resolvem a raiz do mal ínsito na medula das sociedades injustas.
Não
foi por mero acaso que o próprio Papa Francisco no texto da proclamação da
canonizada exclamou: “Ela fez sentir a sua voz aos poderosos da terra, para que
reconheçam as suas culpas diante do crime da pobreza que eles criaram no mundo”. É esta
a maior “afronta” que dimana da obra de Teresa de Calcutá, embora muitos a
desconheçam. E é precisamente neste “item” que alguns biógrafos, entre os quais
o já falecido escritor Christopher Hitchen e os jornalistas Aroup Chtterjee e
Donal MacIntyre, põem em causa o efectivo contributo da “Mãe dos Pobres” na erradicação
da pobreza. Suponho que referir-se-iam à polarização dos conceitos: pobreza
emergente - conjuntural - e pobreza duradoura - estrutural. A fome emergente
requer Caridade de emergência, mas a fome estrutural exige Justiça legislativa e Coragem sem tréguas..
Reflicto
e partilho esta incógnita decisiva e
faço-o para trazer ao trono da consciência pessoal e colectiva tantos e quantos
lutaram contra os regimes de opressão, contra as leis draconianas da escravidão
que ainda hoje perduram a olho nu pelas nossas cidades. Gente de fibra que
pagou nas masmorras o preço da sua sede de atacar as estruturas de uma sociedade ruim, viciadas e assassinas, mas
envernizadas de púrpura e incenso. Esses nunca conheceram o abraço ou o sorriso
das multidões, mas foram tão sobrenaturais como as esculturas marmóreas
beijadas pelos fiéis e alcandoradas pelas hierarquias. Não fossem os
prisioneiros do Tarrafal, não lutassem os militares de Abril e ainda hoje estariam os “velhos” de mão
estendida aos filhos e netos para lhes darem uma côdea de pão. Não fosse a
coragem dos salvadores do Povo, os criadores do Serviço Nacional de Saúde e
ainda hoje estaríamos condenados a esperar a morte numa enxerga malsã. Não
fossem os operários de Chicago, uns presos e outros mortos, e os homens,
mulheres e crianças continuariam a moirejar de sol-a-sol, caídos de tísica no
antro das minas.
E
as Mulheres da estirpe de uma Joana d’Arc,
Catarina Eufémia! E padres e bispos, como Óscar Romero, assassinado no altar, António
Ferreira Gomes, bispo do Porto, expulso de Portugal sob a ditadura de Salazar e o silêncio cobarde do Patriarca Cerejeira,
pelo “crime” de defender os camponeses da sua diocese contra os latifundiários
e exploradores do Norte”
Seria
um nunca mais acabar este cortejo de humilhados e ofendidos, mas gloriosos,
Santos de maiúscula, que nunca foram canonizados. Lembro-me, sobretudo, daquele
friso que todos os dias me acompanha, em lugar cimeiro, na biblioteca
comunitária da Ribeira Seca – Padre António Vieira, Teresa de Calcutá ( já viu
a sua hora de reconhecimento universal) Mahatma Gandhi, Nelson Mandela, Zeca
Afonso, Luther King. E outros que quem me lê também reserva no altar da
memória. É por eles que ainda sonho concretizar um Hagiológio (Vida dos Santos) em que o testemunho
sacro-cívico-social constituirá a
auréola trinitária que iluminou a face sempre viva da sua passagem pela terra.
Uma auréola onde cabem todas as lutas, todos os calvários e todas as vitórias
da Humanidade.
E
se nosso Mestre chamou “Felizes os que Lhe deram de comer, os que O viram doente
e O visitaram, os que O encontraram sem
abrigo e O receberam, também foi Ele – o mesmo! – que proclamou no Sermão das
Bem-aventuranças: “Felizes os que têm fome e sede de Justiça… Felizes os que
sofrem perseguição por amor da Justiça “!
Bem-aventurados
os que lutaram contra a fome duradoura, contra o crime estrutural!
07.Set.16
Martins Júnior
Sem comentários:
Enviar um comentário