À
janela de Outubro, abro lentamente a cortina e leio o som escrito sem partitura
na “Música Aquática” de Haendel, sinto o
verso branco sem linhas lavrado no “Livro
em Branco” das horas felizes. Porque
hoje escrevo sem corpo, tão forte e
possessiva é alma que me toma.
Música,
Água, Idade longa! É essa a alma que
veste o corpo deste dia, numa tríade mágica que transforma tudo em páscoa renovada.
Até das próprias cinzas nascem manhãs de primavera. Falo assim porque não me
saem nem jamais sairão de dentro de mim os acordes de uma guitarra esvoaçando no
terreiro da morte. Isso mesmo. Ontem, quando a urna da saudosa octogenária
Professora D. Ivone preparava a entrada diante das portas do silêncio sem
retorno, em vez de rezas perdidas ou ladainhas de prantos, soltam-se as cordas
das guitarras sustentando a voz de Amália: Foi
por vontade de Deus… Coração independente … Pára, deixa de bater… Eu não te
acompanho mais…
Mais
intensa e avassaladora que qualquer outra oração do ritual seco, inerte, dos
funerais! Lembrei-me do Desfado que o
amigo Paquete Oliveira escolheu para abrir a sua e nossa marcha comum, na Basílica
da Estrela, rumo ao éden de Olivais Sul, a mansão adequada à sua identidade
onomástica. Mais impressivo, ainda, o desejo expresso daquela mãe que pediu aos
filhos, ainda adolescentes, nas vésperas do último suspiro: Quando o meu caixão sair da igreja da Ribeira Seca, digam ao senhor padre
que ponha a tocar a nossa canção “Festa/ Festa do Povo/ O Povo que trabalha/ E
faz o mundo novo”. E justificava: “É
essa canção que me tem aliviado as terríveis
dores com que vou morrer”. Que
sereno estoicismo – mais que estoicismo – energia vital! E assim se cumpriu a última vontade.
Enquanto,
em 1 de Outubro, o último terço do ano aponta a porta de saída de 2016, “os que da lei da morte se vão libertando”
entregam-nos numa bandeja de prata o testamento
da vida, o respiro do optimismo e a força de saltar as barreiras desta pista
onde todos corremos. É por isso que escrevo mais com as asas da alma do que com os dedos
do corpo. Das cinzas da morte renascem
centelhas da Vida!
É
o que vi – todo o mundo viu e, julgo, muitos nem queriam acreditar – no funeral
de mais um obreiro da Paz, Shimon Peres, quando os dois inimigos figadais,
Benjamin Nathanael e Mahmoud Abbas – apertaram as mão e balbuciaram, num fio de
voz pacífico, inspirador – este novo “grito
do Ipiranga” entre a irredutível Israel e a massacrada Palestina: “Há quanto tempo… Há quanto tempo”… Este desabafo de saudade de dois povos irmãos, há tanto tempo desavindos, talvez seja a
primeira página do testamento de Paz que lhes deixou Shimon Peres.
Para
quem continue céptico diante deste gesto promissor relembro o aperto de mão –
tão mal interpretado por muitos analistas – entre Barack Obama e Raul Castro,
no dia do funeral do enorme génio do Consenso entre Povos desiguais, Nelson
Mandela. Afinal foi esse o prenúncio do “inconcebível” Acordo de Paz assumido mais
tarde entre Cuba e os EUA. Quem diria?...
É
por isso que continuo a escrever nas estrelas e não nos epitáfios da morada dos
mortos. É por isso que não nos deixa parados esta canção batida, à beira da
tumba: “Festa do Povo que trabalha e faz
o mundo novo”. Na transição de 1
para 2 de Outubro, oxalá que o referendo do povo colombiano confirme o abraço,
recentemente selado e proclamado, entre o “Timochenko” das FARC e o presidente
da Colômbia, José Manuel dos Santos.
E
Oxalá – agora para nós – que o fio das lágrimas dê lugar às cordas de uma
guitarra, como no dia claro do adeus à Prof. D. Ivone!
01.Out.16
Martins Júnior
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