Se
há temas que suscitam mais impressivamente o confronto na praça pública é
quando a questão social vem à ribalta pela voz de alguém ligado à Igreja. Aí é
o campo de guerra, onde não há tácticas
nem evasivas de espécie alguma: uns abraçam apaixonadamente, outros atiram-se numa
fúria cega contra o “pregador”, tal como a raiva irracional do touro diante do pano
vermelho. É o que se tem visto, de alto a baixo, no tablado da vida. Aqui e mais além. A título de exemplo,
procurei na net as opiniões sobre o vibrante apelo do bispo Angélico
Sândalo Bernardino, citado no meu escrito anterior, e confirmei, de um lado, o
aplauso do povo crente e, do outro, o
ataque feroz de certos clérigos – a pele anémica à roda de uns olhos furibundos
– vociferando, de código canónico na
mão, contra o ilustre ancião Angélico Sândalo, sem o mínimo escrúpulo de
atirar-lhe em rosto a foice e o martelo
de “comunista”.
É sempre assim. No meio de tanta ‘histeria
religiosa’, coloca-se-me diante dos olhos esta incontornável pergunta: Porquê
tanto descontrolo, tanta praga, tanto anátema quando alguém aborda com realismo
a missão da Igreja face aos desequilíbrios sociais do nosso tempo?... E a
pergunta avoluma-se em tom mais agudo e lancinante, sobretudo hoje, 17 de
Outubro, “Dia Mundial da Erradicação da
Pobreza”.
Velha
e ponderosa questão que vem de longe e para longe vai, desde que há humanos
sobre o planeta e que só se extinguirá quando definitivamente sair de cena o último habitante terráqueo!
Incontáveis são as prestações filosófico-teológicas, os argumentos, as
proclamações “urbi et orbi” que se têm multiplicado sobre o tema, Na minha mesa
de trabalho, tenho diante de mim, neste momento, nada menos que vinte volumes
de autores diversos, desde Leonardo Boff (Grito
da Terra, Grito dos Pobes) até Albert Gelin (Les Pauvres de Yahvh). Após consulta acurada, venho a ancorar o
pensamento neste ponto de chegada que é, simultaneamente, o ponto de partida:
A história do mundo
desenha-se na arena encarniçada, onde
frente-a-frente, degladiam-se interesses conflituantes que, no limite, se resumem à luta do esquadrão dos
poderosos contra a multidão dos pobres, párias abandonados à sua sorte, sem hipótese
de vitória: a dignidade e a igualdade de oportunidades.
O
combate feroz vem do princípio do mundo: o astuto Caim contra o justo e frágil
Abel, assassinado pelo próprio irmão, sem ter ninguém que lhe valesse. No mundo
de hoje, os descendentes de Caim não pararam de construir o império do mais
forte sobre o mais fraco: latifúndios, castelos, canhões e “offshores”, “bunckers” e paióis. Mas quem aparece a
defender os degradados “herdeiros” do justo Abel, os operários, os sem-terra,
os servos da gleba, os escravos, os refugiados?... Com quem poderão estes contar
para fazer ouvir os seus gemidos e protestos?... Os Estados, que só se aferram
ao poder… os armeiros, cujo objectivo é a terra queimada… os banqueiros de alma
feita de metal sonante… os clubes “suciais”
dependurados nos subsídios dos governos… os medrosos, quando não mafiosos,
devotos que se acoitam debaixo do burel piedoso… as multinacionais, “que aos pobres dão um chouriço para lhes sacarem um porco” ????...
Leio em El País que a Coca y Pepsi, para aumentar as vendas,
financiam ao mesmo tempo organizações que recomendam a redução do açúcar nas
bebidas. Requinte de cinismo – comenta o autor.
Só uma autoridade digna, imune às ambições do
poder, desinibida e livre de sair à rua, sem medo de perder as benesses e as
boas-graças dos magnatas governantes – alguém, tocado pelo timbre dos
verdadeiros heróis, prontos a dar a vida pela sua palavra, gente de espírito e sensibilidade. Esse Alguém
é a Igreja de Cristo. Não o tabernáculo dourado dos homens. E sim a grande
cúpula reservada aos que, nada tendo nas
mãos, trazem a alma cheia da maior riqueza que o mundo ruim desconhece: dar a
vida pela Justiça e pela Verdade. Erradicar a pobreza!
Os
que propugnam o espectáculo deslumbrante
e, por via disso, não querem uma Igreja reduzida aos muros do templo e da
sacristia, são os mesmos que não deixam, amaldiçoam até, uma Igreja autêntica
que sai à rua em defesa da justa repartição do bem comum. Mas se lhes tocarem nas subvenções aos colégios, “Aqui d’El Rei”, vamos, criancinhas,
à Cruzada contra os Infiéis!
Preferem
na rua os pendões, as velas, as procissões arrebanhadas, movidas a vapor sem chama, porque manipuladas e anestesiadas,
cantando alegremente enquanto pisam o asfalto negro, que me traz à mente o símbolo
das vítimas que sucumbem aos “bulldozers” dos justiceiros-senhores
do mundo.
Chega
de uma “Igreja-Coca-Cola”!
17.Out.16
Martins
júnior
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