Foi deslumbrante, de 8 para 9 de
Outubro, ver a noite em Machico transfigurada pelas luminárias, tantas, que até
ofuscaram a rede pública da Empresa de Electricidade. Lembram, todos os anos,
os nocturnos da longínqua idade medieval, povoada de fantasmas e mistérios. Mas
o epicentro de toda essa galáxia de cera mole foi a palavra redonda, redonda e
vermelha, vermelha, da cor da túnica oriental, saída do “sol” diocesano: Bem vindos vós, romeiros, que viestes pagar ao Senhor dos Milagres as vossas promessas.
Nesse
mesmo domingo, 9 de Outubro, anteontem, as leituras bíblicas desdobravam diante
dos nossos olhos um filme heróico e comovente: a cura do comandante-em-chefe
das Forças Armadas da Síria (lá, onde hoje agoniza a martirizada Alepo) o
general Naamã. Vem no 2º Livro dos Reis, capítulo V. Tentarei resumi-la neste breve (?) esboço, de uma possível peça de
teatro.
ACTO I
Sala escura, cheirando a carne moída e
malsã. Ao fundo, encovado no divã, jaz Naamã, com a lepra a tomar conta dos
braços e do rosto. Entra o lugar-tenente.
LUGAR-TENENTE
Mau general, acabou-se a maldição. Cedo serás livre da fatal doença, se fores ter a Israel com um tal Eliseu, o homem
de Deus. Profeta e curandeiro.
NAAMÃ
Juro que não irei a Israel. Será esse profeta maior e mais
sábio que os físicos do nosso Império Sírio? Não vou
LUGAR.TENENTE
Tente V.Senhoria, meu general. Toda a corte irá consigo.
ACTO II
Santuário de Ihaveh: um
humilde casebre onde se acoita Eliseu. Na liteira, suportada por quatro eunucas
da corte, entra o general, suplicante.
ELISEU
Não fales mais. Tem confiança. Vai mais além, ao rio Jordão e mergulha sete vezes.
NAAMÃ – dando ordem de retirada aos eunucos
Juro que não vou. Temos na Síria rios mais famosos que esse
reato Jordão de Israel. Não vou.
LUGAR-TENENTE
Nosso general, atenda a este vosso servo. Siga o caminho do
homem de Deus.
NAAMÃ
Não vou. Esperava eu que esse profeta fizesse oração, que me
deitasse a bênção a este corpo que se desfaz. E manda-me lavar ao rio! Está
dito, não vou. Palavra de general.
LUGAR-TENENTE
Por vós, Senhor. Pelo poderoso exército sírio. Por todo o
povo do nosso reino. Vamos todos. Avante, eunucos.
ACTO III
Rio
Jordão. Manhã clara, sol de primavera. Aias e eunucos envolvem o corpo de Naamã,
pousam-no na margem do rio que, entretanto, o afasta para o leito da corrente mansa.
Mergulha uma vez. E outra. E a terceira. Na ponte do rio, a comitiva agita-se,
ansiosa, num crescente entusiasmo.
VOZES
Será possível? …Que vemos nós?... A carne toma cor… os braços a abrir. Outro
mergulho. E mais dois. E com que energia estranha! … Só falta mais um… E já
nada sozinho. Palmas, hossanas ao Profeta de Deus, ao Deus de Israel.
AS AIAS
Quero ser a primeira a tocá-lo… E eu quero beijar aquela pele,
agora macia e leve como uma criança recém-nascida.
Naamã
sai das águas do rio. Parece acordar de um sonho. As aias e os subalternos
trazem vestes novas, limpas, reluzentes. Todos gritam de alegria incontida.
NAAMÃ
Fora
de si, instintivamente ajoelha, ergue os
braços ao alto
Não há outro Deus, senão Iahweh de Israel. Levantemo-nos
todos, vamos ao santuário de Eliseu. Trazei-me os cofres das moedas de ouro, os
sacos das moedas de prata, as vestes especiosas do mais rico tecido de Damasco.
ACTO IV
Casebre-santuário
de Eliseu. Ao chão térreo chega, primeiro, Naamã. Depois, todo o seu séquito, as aias, os
eunucos que deixaram fora a liteira, o lugar-tenente. Manda aos oficiais
subalternos que tragam os presente. Há vivas e cantares. Prostrado
por terra, o general, em altos brados, diante de Eliseu.
NAAMÃ
Jamais curvarei meu corpo diante de outros deuses. A Iahweh, o Deus de Israel adorarei e só a Ele
para sempre servirei. (Sem
parar, fala a Eliseu). Profeta
de Deus, eu te saúdo e dou-te graças. Rogo-te que dês a este teu servo o dom de
aceitares estes presentes que te trago.
ELISEU – dando as
mãos a Naamã.
Pelo Deus vivo que tenho servido, sou eu agora que te juro:
Não aceitarei, seja o que for que trouxeres. Levanta-te, segue o teu caminho,
cumpre os mandamentos do Deus de Israel.
NAAMÃ
Não, Profeta de Deus. Eu agora sou o teu vassalo e Iahweh o
meu soberano. Só irei em paz para a minha amada Síria, se aceitares estes singelos
presentes.
ELISEU
Não aceitarei. Nem eu, nem o meu ajudante Giesi. Está dito.
Palavra de Profeta. Segue o teu caminho.
ACTO V
Perante
a recusa, o general pede para transportar
um pouco de terra de Israel, para levantar em Damasco um templo ao Deus de
Eliseu. A despedida de Naamã e de todo o séquito faz-se entre lágrimas,
clamores e cânticos de festa. Entretanto, recolheu-se o Profeta em oração. E
Giesi, sempre atento e de olhar
sequiosos em todo o Acto anterior, deixou que a comitiva dobrasse uma das dunas
do deserto e, às escondidas de Eliseu, galopou a toda a brida no encalce de
Naamã, que mandou parar a sua escolta.
GIESI
General do Grande Império! Digna-te perdoar a este teu servo…
O meu amo e senhor Eliseu acaba de receber em sua casa dois mancebos, filhos de
profetas da montanha de Efraim. E não tem nada que lhes dar. Poderá V. Senhoria dispensar uma ou duas
porções do presente que ele recusou?...
Iahweh te agradece e o Profeta te abençoa.
NAAMÃ
Viva o Deus de Israel! Aias e eunucos, oficiais meus
subalternos, devolvei a Giesi todo o
ouro, toda a prata, as vestes reais e tudo o mais que eu trouxera ao Profeta. (Para
Giési). Não te esquecerás de dizer ao teu amo e senhor
quanta honra e felicidade destes a este seu vassalo e para sempre sequaz do Deus do Profeta de Israel.
ACTO VI
Giesi,
radiante como nunca, depois de guardar ciosamente em casa a fabulosa oferta de
Naamã, apresenta-se, nesse fim de tarde, a Eliseu, no templo-casebre onde
ficara.
ELISEU
Giesi, dizei-me por
onde andou este meu servo bom e fiel, toda a tarde deste dia.
GIESI
Por lado nenhum, meu amo e senhor
ELISEU – Em tom severo e ameaçador.
Pensas, acaso, que o meu coração não foi contigo., quando
saíste na tua montada?... Pensas que eu
não te vi receber desse homem riquezas sem conto?... Pensas que o Deus de Israel
não te viu quando as escondeste em casa?... Recebeste dinheiro e mudas de
roupa real em nome do Deus vivo, que eu sirvo!!!
(Giesi,
transido de pavor, escondia-se no desvão da escada).
ELISEU – (No mesmo tom de voz)
Não fujas, Giesi, hás-de ouvir-me até ao fim. Hás-de saber a
sentença que te reserva Iahweh. Agora,
estás rico, riquíssimo. Podes à vontade comprar
terras, vinhas, gados, bois, carneiros. Terás tudo o que Naamã te
deixou. Mas, ficarás com algo mais. (expressão mais grave e austera). Sim, ficarás com algo mais. Ficarás com a lepra de Naamã!... Tu e toda a tua
geração!
(Cai o
pano)
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O texto do 2º Livro dos Reis, capítulo V, versículo 27,
termina assim :
“E naquela hora Giesi
retirou-se, com o corpo coberto de lepra”.
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E agora termino eu:
“Vem, Eliseu Profeta de Deus, olha em
teu redor e em nosso redor. Hás-de encontrar, decerto, muitos Giesi’s, locupletados . à custa do Deus
de Jesus e Sua Mãe, comprando quintas e
quintais, carros e carruagens, bolsos e bolsas bancárias. Não com o dinheiro de
generais, mas com as promessas ‘pagas a Deus’ pelos pobres crentes, explorados no corpo e na alma”.
Será que o mundo anda todo
leproso sem darmos por isso?!
11.Out.16
Martins Júnior
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