Pela
primeira vez, componho a minha partitura em prosa que, de tão longa e farta,
começa hoje, 31 de Outubro, e alcança o clímax amanhã, 1 de Novembro. Porque a
melodia que trago nos dedos é feita, primeiro com vagidos de criança
recém-nascida, repercutindo-se, depois, de encosta a encosta, por todo o vale de
Machico, adolescente, jovem, adulta e bela.. É
dela, dessa criança de outrora, hoje
aniversariante com 120 cerejas rubras e, com elas, 120 velas em cima de um saboroso
bolo centenário, que tentarei desenhar o meu convívio convosco, particularmente,
com as gentes da Terra de Tristão Vaz.
Foi
em 1896. Nesta noite, que não de bruxas, mas de sereias saídas da velha baía,
adivinhava-se o parto sonoro que amanhã, Dia dos Santos Todos do Mundo, viria sobredoirar
a silhueta da nossa paisagem, desde o alto das montanhas até ao seio fundo da “extensa
ribeira preguiçosa, alisando pelo meio alvos
penedos”, conforme vaticinara , um
século antes, o “Nosso Camões”, Francisco Álvares de Nóbrega.
Nasceu
num bercinho pobre, cheirando à plaina
dos carpinteiros, ao labor esforçado de pedreiros, à tenda de sapateiros, aos
campos verdes dos camponeses. Não obstante a raiz quase proletária dos seus genes, teve nome
real e a bênção da monarquia imperial. Rei de Portugal e dos Algarves, foi D. Carlos
I o padrinho-patrono e, mais tarde, aquando da visita de Suas Majestades ao Funchal,
em 31 de Julho de 1901, foi a “criança”,
de cinco anos apenas, saudar clangorosamente os soberanos Monarcas à capital do
Arquipélago.
Cresceu ao ritmo das muitas convulsões
que culminaram na implantação da República Constitucional, em 1910, substituindo então o seu passaporte inicial de
sobrenome real pela autóctone matriz municipal.
Tempos adversos se lhe seguiram, os da I Guerra Mundial, sem nunca lhe esmorecer o ânimo de semear abadas
de alegria não só na freguesia, mas em todo o concelho e fora dele. Assistiu à
ditadura nascente de 1931, vestindo a farda de sargento deportado, com o qual
garantiu a consistência do seu crescimento evolutivo na construção do edifício
cultural da sua terra natal.
Atravessou os dias tempestuosos da “Revolução do Leite”, em 1936, mas aguentou-se já adulta com 40 anos de idade, caldeada na
alma de machiquense ilustre e conceituada no panorama musical de toda a Madeira.
A II Guerra Mundial fê-lo passar as
privações comuns aos demais portugueses que, embora mantendo-se à distância, indirectamente sofreram as consequências.
Nada, porém, travou a marcha que iniciara em 1896.
Em 1956, no ‘tornado’ que assolou
Machico rural e urbano, manteve-se, atento e seguro, no posto cimeiro da sua
missão de garantir o povo mais firme e aguerrido perante as adversidades, tal
como sucedera com os seus antepassados na tragédia de 8 de Outubro de 1803, que
todos os anos evocava em acordes plangentes ao longo das ruas de Machico.
E assim perfez os 60 anos de existência.
Nesta alegoria breve, está plasmada
meia-idade da nossa Banda, que começou com o garboso título de “Phylarmónica
D. Carlos I” e, desde 1910, tomou a designação que ainda hoje ostenta, “Banda
Municipal de Machico”. Os seus primeiros
executantes eram oriundos da classe operária que, após um dia de trabalho árduo,
aplicavam as “mãos calosas” na arte dos deuses, sem os apoios de hoje,
comprando eles próprios os seus instrumentos
e as fardas da colectividade. Esforço porfiado e nobre em tempos recuados de
mais de 100 anos! Os dirigentes, quase sempre autodidactas, conheceram nos primeiros anos da década de 30 o saber
técnico e a experiência artística de militares que o governo da ditadura
deportou para a Madeira. Males que vieram por bem – para a ascensão da nossa Banda.
Os 60 anos seguintes, desde 1956 até
2016, terão amanhã, 1 de Novembro, a consagração final do esforço e da sensibilidade de Machico, gente de outrora igual à gente de agora, ao longo de um trajecto venerável, comprovando
que nunca será vã a entrega de alguém a um sonho, por vezes, utópico, mas que
terá no futuro a florescência e a beleza que nutrem a alma das nações.
31.Out.16
Martins
Júnior
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