É
sexta-feira. De um tempo maior.
Ambos
– tempo e sexta - trazem um estigma que marca e abarca templos, cidades,
caminhos, lugarejos remotos, onde quem é crente reconstitui a chamada Via Crucis, memória evocativa de um
percurso pedregoso, ingrato, lá para os lados de uma Jerusalém de há mais de
dois mil anos. O estigma é o símbolo da Cruz, perante a qual o povo se comove,
se entretem e, não raras vezes, se compraz, atribuindo-lhe uma conotação
mítica, a roçar a magia e a superstição.
Se
os meus acompanhantes dos ‘dias ímpares’ tiverem paciência e lugar, partilho a
breve incursão que ensaiei, hoje mesmo, nesta comunidade onde vivo. Chegaremos à
conclusão de que o sacralizado símbolo
da Crus destrói-se a si próprio e torna-se o anti-símbolo. ´Contradiz-se a si
mesmo, devido ao uso e abuso que dela se tem feito.
A
Cruz domina a estatuária, a arquitectura soberana e entra no coração e na carne
dos seus utentes. Ela pula, gigante e altaneira, para a ogiva das catedrais, guarnece
os alçados palacianos, adormece na tumba dos cemitérios, emoldura a heráldica dos
brasões monárquicos e os medalhões dos laureados
famosos, Por fim, ela cola-se ao peito
daquela jovem que mais prendada fica se a trouxer em fio de ouro puro. Chega a
ser ‘chic’ usá-la e ostentá-la.
E
há um mercado-super de matérias primas para construí-las, as cruzes. Há-as de
pinho da terra, e de ferro forjado;
há-as de plasticina e de bronze cinzelado; há-as, ainda, de marfim e porcelana. É um santuário de
cruzeiros a sala de coleccionadores agnósticos. Incomoda-me mais, porque me
repugna, ver gente veneranda e devota transportar, de semblante compungido, um crucificado de prata banhada em
ouro, arvorando-o em comemorações de calvário. Como se a carne e os ossos do martirizado
Cristo se mudassem em metal precioso, após a sua morte.
Mas
a Cruz . aquela que se conhece – nada tem de especioso, mítico ou espectacular.
Pelo contrário, ela é a prova mais acusativa da violência dos poderosos, o
simulacro horrendo do quanto é capaz a malvadez humana que sadicamente mata os
inocentes. A Cruz é o equivalente à fogueira da Inquisição, à guilhotina, à corda de enforcar, ao forno
crematório, enfim, ao gaz ‘sarim’. A
Cruz nunca foi motivo de orgulho, porque é o símbolo da nossa vergonha comum. Por isso
que nunca será peça de adorno, muito menos joalharia sacra ou cereja altaneira
no cimo dos campanários. É neste contexto que se interpreta o sermão que o
grande Padre António Vieira fez na Capela Real, diante da corte imperial ali
reunida, os fidalgos brasonados na primeira fila: “Antigamente, eram os ladrões
que pendiam do alto das cruzes. Hoje são as cruzes que pendem do peito dos
ladrões”.
Assim
seria sempre o simbolismo da Cruz se não fosse o corpo que lá cravaram os poderes de então: o poder religioso do Templo,
aliado ao poder político-judicial do governador Pilatos.. Absolutamente! Assim
como aos grandes abismos correspondem grandes altitudes, assim o patíbulo da
Cruz serviu para demonstrar a autenticidade e a palavra de honra de Alguém que
pagou com a morte a factura da Sua palavra. Antes quebrar que torcer! Foi o Corpo
agonizante do Mestre que, de coração benfazejo, destruiu a malvadez dos assassinos que maquinaram e levantaram aquele
instrumento de ignomínia. “Pai, perdoai-lhes, porque (os autores materiais,
estes pobres soldados) não sabem o que fazem”.
Derrubar
as cruzes, libertar os crucificados: quem quer alistar-se nesta campanha?...
07.Abr.17
Martins Júnior
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