Escrevo
no corredor da noite de Quinta para Sexta-Feira.
Noite branca. Noite negra. De suores frios e toalhas de linho sobre a mesa. De
traições ocultas e sobre-humanos perdões. Tudo começou num jantar clandestino de despedida, direta para o matadouro
anunciado. A fatia do pão e a taça do vinho acabaram numa túnica embebida em
sangue. Noite de contrastes, portanto. Não foi brinde amistoso o daquela noite.
Só
Ele via, em grande e claro plano, o guião do trágico filme, em que seria
protagonista e vítima indefesa, às ordens do potentado religioso do Templo de
Jerusalém. Não obstante, no adeus final o ar pesado daquela sala, cedida
gratuitamente para a “festa”, tornara-se leve e transparente desabrochando em abraços
sem palavras. Porque o ar puro, transcendente, chamava-se Perdão.
À
distância de mais de dois mil anos, acompanhámo-lo, ao Mestre, nesta noite. Aliás, foi Ele que veio ter connosco,
sentou-se ao nosso lado na mesa rectangular coberta do linho da terra. E
ficámos a saber que perdoar faz bem à saúde. Descobrimos que não se aguenta uma
vida inteira com um revólver dentro do peito nem com um coração feito pedra em vez de carne verdadeira, sensível,
imune às arritmias fatais. E, daí, aprendemos
também que o perdão não é um acto estritamente religioso mas uma proposta de educação cívica,
porque ele só tem lugar no chão tangente da vida quotidiana e não nas paredes
amorfas de um santuário, por mais sacrossanto que se apresente. Na enorme
redoma planetária em que nos meteram,
marcada pelos ribombos de tudo arrasar, sentimos que somos capazes de enterrar
machados de guerra sem nos demitirmos da luta franca e justa dos nossos ideais
colectivos. E aí percebemos que no palmo de quarto que habitamos, rugem
explosões de circunstância – palavras, olhares, gestos mútuos - que
podem sufocar quem vive à nossa beira, provocando depressões tão corrosivas
como as armas químicas.
Por
outro lado, não foi difícil perceber que os auto-proclamados mestres de perdões
oficiais apoucam a nossa visão e só se interessam em formatar-nos na ‘gravidade’
das minudências ocasionais, nervuras, neuroses, beliscaduras individuais, enfim,
o tecido curricular inerente à comum
fragilidade humana. Para os confessionários é isso que conta. E deixa-se de
fora a grande criminalidade, a opulenta e sofisticadamente elaborada para
melhor explorar o mais fraco, o mais pobre, o mais doente. Aos crimes ou
pecados sociais que matam silenciosamente povos e gerações, a Igreja dos tronos
e altares não tem formulários, pagelas ou penitências pias. Talvez porque o seu escandaloso património terá sido
fabricado também nos G8 de vários séculos! Foi preciso que “um homem do fim do mundo”
rompesse os oceanos e chegasse à Europa ‘cristã e ocidental’ para entender o
rol doméstico dos nossos desacertos e apontar, aqui e agora, os crimes sociais dos brâmanes,
dos intocáveis, dos que ficam sempre no pódio dos vencedores.
Por
fim, consolidámos a convicção de que a Deus ninguém rouba, ninguém mata,
ninguém O leva à falência, ninguém O ofende, ninguém O engana. Tudo isso
acontece - só e sempre - quando o
agredido, o lesado, o ludibriado é o nosso co-transeunte, que vive e viaja connosco,
perto ou longe, um Ser: humano, animal,
vegetal, mineral, solar ou lunar, numa palavra, a Mãe atmosférica , telúrica que nos deu o berço e um dia há-de recolhê-lo
na sepultura. Como viveu e sentiu
Teillard de Chardin, nunca atingirá o
vértice do Espiritual quem não partir das raízes do Natural.
Assim
também o pão e o vinho novo – o Perdão – desta histórica vigília de Quinta para
Sexta-Feira. Assim
se canta o Perdão à mesa da Comunhão!
13.Abr.17
Martins Júnior
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