Desde ontem, domingo, vou escrevendo
como quem corre pelos trilhos de uma maratona sem termo ou como quem canta em
cima dos escombros da própria casa esmagada pelo furacão. Porque é impossível viver sem olhar o pico
alto, nem se consegue respirar senão abrindo os pulmões ao sol da madrugada,
venha ela cedo ou tarde.
Ontem
foi a última passada para chegar às margens da Páscoa e onde se falou de soltar
os cativos do túmulo e trazê-los à vida (Ezequiel,37,
12-14 ). Viu-se também o filme narrado de um tal Lázaro, ‘amigo do peito’
do Cristo taumaturgo, sair da tumba cavada na rocha e voltar aos caminhos reencontrados
de Betânia, sua aldeia natal. (Jo,11,
1-41) . Tocou-me as entranhas da emoção e da razão
essa mensagem positiva, sublimadora, em manifesto contraste com os arroxeados
crepes da chamada Semana Santa que tanto comovem as mentalidades tradicionais,
secundadas pelos não menos tradicionalistas e taciturnos ritos que a
acompanham.
Que
estranho fenómeno de masoquismo! Parece que os crentes deliciam-se na
contemplação da derrota, na exploração mórbida do drama, do suor de sangue no
Horto das Oliveiras, dos espinhos e das marteladas no Calvário, a desnudação do manto inconsútil do Nazareno,
enfim, alteou-se o Crucificado como símbolo e talismã supremo que importa ver e
guardar a todo o momento. É o guião impressionista, até ao extremo insuportável,
de Mel Gibson, cuja película muita e ‘boa’ gente adorou. Sem mais preâmbulos, o
meu comentário cinge-se a uma simples pergunta: “Qual de nós gostaria de
exibir, como único troféu ou ex-libris, a figura de seu pai, de sua mãe, de um
seu irmão, publicamente humilhados num cadafalso, vilipendiados, quase-nús,
irremediavelmente derrotados?”…
Nem
o próprio Redentor. Pelo contrário: o que Ele pretende é que O ajudem a transportar
o madeiro, aliviar-lhe o martírio, como fez Simão de Cirene. O que Ele quer é
que O tirem da cruz, como fez José de
Arimateia que até lhe ofereceu o túmulo da família, estalagem transitória de sexta a domingo. E como
a Mãe que, já morto, O recolheu nos
braços sustentados por uma força maior – a certeza da vitória, três dias
depois.
É
por isso que os textos de ontem só falam do regresso à vida, à acção, à luta
pelo triunfo da Verdade e do Bem. É por isso que o pico alto da Páscoa e a sua mais
expressiva bandeira não são a cruz da derrota, mas o Cristo redivivo,
libertador, triunfante, para fazer subir e triunfar toda a Humanidade. Assim
fizeram protagonistas anónimos da história humana, companheiros de prisão,
amigos debruçados sobre os abismos da depressão alheia, enfim, solidários activos,
corajosos, com risco da própria vida, desobedientes às leis dos ditadores, mas salvadores de homens, mulheres e crianças,
como foram Aristides Sousa Mendes e
Salgueiro Maia, comemorados e
ressuscitados hoje, 63 e 25 anos após a sua morte, respectivamente.
Mas
escrevo desde ontem, pensando e sentindo que há mais Páscoa a cantar dentro das
quatro paredes da mesma casa e depois se alargam e projectam para o grande
estádio desta comunidade.
Desculpar-me-eis este
desabafo de estado de alma, mas não consigo ultrapassá-lo sem partilhar
convosco. Seis anos selaram a urna branca do menino que brincava à nossa porta,
que subia aos mastros engalanados das nossas festas e que nos encantava a todos dedilhando as cordas
do seu bandolim. E nessa noite, foi
paixão e morte antecipadas para seus pais que aceitaram nos braços um filho
morto – o único! Vinte anos de primavera ceifados quando abria
o mês de Abril…
Mas não quiseram os pais
amortalhar-se nas lágrimas da campa breve. Ergueram-se à luz de um sol que os
esperava por detrás da montanha abissal da amargura. E mesmo desafiando os
imponderáveis da idade, pendente já para a linha do equador da vida, transformaram o luto em cânticos
e dos espinhos fizeram pétalas de ouro, trazendo ao mundo essa mimosa manhã de
Páscoa, a quem puseram o nome de Vitória! E o encanto voltou de novo à paisagem,
encheu os nossos braços e agora saltita
feliz de mão em mão deixando sorrisos e ternuras infantis em todos os corações.
Onde só havia uma cruz solitária levantou-se uma haste fina e bela que se junta agora às cerejeiras em flor e aos aleluias pascais.
Desde ontem, estamos
tecendo o hino à morte que se tornou Vida. VITÓRIA é o seu nome.
É assim a Páscoa que
queremos todos construir!
03.Abr.17
Martins Júnior
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