Tão
juntos e tão distantes!... Enquanto
Portugal cantava quatro décadas sobre a alvorada de Abril, em Espanha
chorava-se o dobro sobre a noite trágica em que uma pequena cidade foi reduzida
a escombros. Em “25 de Abril” soltaram-se 43 cravos de vitória no canteiro
português. Em “26 de Abril”, os nossos vizinhos ‘hermanos’ sentiam
repercutir-lhes no peito 80 batumes de dor, recordando o horrendo bombardeamento de Guernica pela aviação alemã, em 1937.
Era
este o paralelo que me propunha desdobrar neste fim-de-dia, inspirado no imorredoiro
quadro de Pablo Picasso sob o mesmo título. Foi o bárbaro conluio entre dois
ditadores, Franco e Hitler! Por onde se demonstra que são os homens – somos
nós, o Povo - quem transforma o riso em
lágrimas e, paradoxalmente, o luto em cânticos.
No entanto, optei por respirar o ambiente puro
e pleno em que Machico viveu o Dia da Liberdade. Faço-o, por um impulso
necessário, precisamente para consolidar essa convicção, tantas vezes esquecida
ou indiferenciada, de que é nesse esquecimento ou nessa indiferença generalizada que a ditadura aproveita para gerar os monstros
futuros, como os de Guernica e do Holocausto.
O júbilo maior que se evola do ambiente
vivido nestas comemorações consiste na verificação
‘ao vivo’ de um dado firme, científico e promissor: o de que hoje como ontem,
passados 43 anos, as pessoas recriaram instintivamente a pujança e o brilho com
que viveram a primeira hora da primavera em Portugal, mais intensamente na sua
freguesia. O local foi o mesmo, o Largo do Município, campo de lutas contra uma
tropa capitaneada por um tal brigadeiro traidor dos ideais dos capitães de
Abril. Ali, sendo o chão de sofrimento, foi também o palco da vitória. Por isso,
a chama do amor mátrio, iniciada há 43 anos, continua viva e perene em avós, filhos
e netos que, num abraço comum, voltaram a encontrar-se no centro da cidade.
Ali, sente-se o “Dia inicial, inteiro e limpo”, de Sophia de Mello.
É sintomático o teor do programa que
alinhou, não apenas comícios de intervenção, mas todo um composto holístico de
actividades culturais, lúdicas, musicais, sempre com a Ideia de Abril no
horizonte. Desde o hastear das quatro bandeiras – da Europa, de Portugal, da
Madeira e de Machico – acompanhado pelos respectivos hinos a cargo da Banda
Municipal de Machico e da formação em parada dos Bombeiros Municipais, o dia
começou com a ‘Corrida da Liberdade’ entre Machico e Santa Cruz, de mais de
duas centenas de participantes (o presidente da edilidade machiquense,
inclusive) e das mais diversas idades e extractos sociais, numa co-organização da
Câmara e da Associação de Atletismo da Madeira. Já na ante-véspera do dia 25,
abriu-se uma expressiva Exposição de Abril em Machico, desde os primórdios até
à actualidade. "Automóveis da Revolução" foi o título dado à apresentação de veículos da época, uma iniciativa apreciada por grande número de visitantes. Na véspera, um acontecimento notável abrilhantou o romântico Largo
de São Roque. Foi como que uma reconstituição (em escala miniatural) da Monumental Serenata da Sé Velha de Coimbra,
toda ela preenchida com baladas do cantor de Abril, José Afonso. Dentro da
vetusta capela dos séculos XVII-XVIII, soaram mais autênticas e plangentes as
guitarras acompanhando as sonoras vozes de António Macedo, Luís Filipe Costa
Neves, Jorge de Freitas e Carlos Bettencourt, com apresentação e condução de
José Júlio. Simplesmente emocionante! E mais tocante foi a presença do
jornalista de Abril, Adelino Gomes, quando se nos apareceu e começou por abrir o livro da memória, contando aos presentes os primeiros
contactos com o autor da “Grândola, Vila Morena”. Memorável!
Na tarde de 25, a chuva teimosa fazia
prever o vazio no Largo das comemorações, o já mencionado chão de luta e palco
da vitória. Eis senão quando, vimo-nos envolvidos num vasto círculo de gente de
Machico (e não só) que, como por sortilégio, ali compareceu. Eram rostos de
ontem e de hoje, adultos, jovens e crianças, movidos por uma alegria
contagiante, libertadora. Ali recitou-se o “Operário em Construção”, de
Vinicius de Morais, exaltação antecipada do Dia do Trabalhador. Suspenderam-se
as intervenções programadas e, no intervalo da chuva, os grupos de bailados
populares de Abril descreveram as danças e cantares de “Machico- Terra de Abril”,
participadas pela população circundante. Foi esta, talvez, a maior surpresa do
dia.
Mas faltava, ainda, a cereja em cima do
saboroso bolo de 43 velas. E aconteceu, à noite com a actuação do Grupo Coral
de Machico, dirigido pelo maestro Nélio Martins. Inexcedível o cortejo de “Canções
de Abril”, onde desfilaram Fernando Lopes Graça, José Afonso, Adriano Correia
de Oliveira, Vitorino, José Mário Branco, António Variações, aos quais o coro
quis associar duas das minhas canções, já editadas, mas desta vez valorizadas
pela excelente harmonização do maestro. O fórum, completamente cheio,
manifestou calorosamente o seu apreço pelo precioso contributo do Grupo Coral
de Machico neste inesquecível concerto.
Bem merecidos aplausos!
Deixo nesta folha de calendário o
presente registo para memória futura. Sobretudo porque a comunicação social
ilhoa entendeu silenciar, mais uma vez, a vitalidade anímica de um Povo – o único
na Madeira que nunca deixou de assinalar publicamente o Dia da Liberdade. Mesmo
nos tempos em que os intrusos do 24 de Abril, herdeiros e beneficiários do
Estado fascista, proibiram as comemorações oficiais, a população de Machico
ergueu sempre a cabeça, fazendo jus ao seu título onomástico: “Machico-Terra de
Abril”. As rotativas e os microfones
deste “reino” quiseram abafar a vivência
autóctone da Democracia na idade da ternura. É que não poisou aqui nenhum
secretário regional nem caiu do céu nenhuma vedeta nacional. Tanto melhor, para
ser mais autêntica e consciente a respiração da alvorada de outrora. Enquanto
houver gente de Machico, a ditadura não passará nem fará covil por estas bandas!
Força e congratulação aos organizadores
desta magnífica jornada – a Câmara Municipal, a Junta de Freguesia e “Cidadãos
por Abril” de Machico.
Tal
como o rasto brilhante que o cartaz luminoso projectava na baía, assim
continuaremos a tecer de luz os caminhos da existência marcada pela estrela da
manhã que todos os dias renasce no horizonte português – o “25
de Abril”!
27.Abri.17
Martins Junior
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