Nunca o vi tão alto e pleno como
naquele caixão de sete palmos deitado no chão marmóreo do velho mosteiro. Aí vi
que os braços subiam, sedentos e suaves,
até formar o vértice das ogivas soberanas da nave principal. Nem vivalma
pairava no silêncio daquela hora. Entrei, por mão amiga, que logo se afastou.
Ajoelhei-me diante das quatro tábuas que
guardavam o corpo escasso, as mãos franzinas, os olhos de brilho vivo que
pouco antes conhecera, a boca frágil que pouco antes me servira o verbo novo
com o sabor a fruta lampa da estação.
Alia jazia. Só.
Sem ninguém a ampará-lo. Como os deserdados sem abrigo que ele tanto acompanhara
em vida. De joelhos prestei –lhe culto, falei-lhe como quem reza a um santo no
altar. Porque aquele chão, senti-o elevar-se mais alto que a ara-mor da capela
gótica do milenar convento da Ordem Hospitalar.
Pouco tempo
durou esta visão etérea. Depois, o templo encheu-se: um batalhão de sacerdotes,
um pelotão de bispos, túnicas brancas, vistosas mitras pontiagudas, convidados especiais,
autoridades, capas roxas da confraria, cortejo processional, ceroferários,
turíbulos esvoaçando incenso. E gente, muita gente: de Setúbal, de Lisboa, de
Coimbra, de Aveiro, do Porto e de outras dioceses. Centenas dentro, milhares
fora do santuário. Exímios solistas salmodiavam
árias dolentes que a todos nos tocavam
as ‘cordas do coração’.
Presidiu o seu sucessor em Setúbal, o
madeirense Bispo José Ornelas Carvalho, que proferiu o discurso exequial.
Juntei-me à multidão anónima e do
quanto baixinho sussurravam as pessoas apercebi-me que o que mais agradaria ao “Bispo
Vermelho” era ver ali os pobres, os marginalizados, os desempregados, as vítimas
inocentes da fome e da solidão. Esses, que formaram o seu cortejo em vida, quanto
desejaria ele que o acompanhassem na
romagem derradeira!
Os pobres fizeram-no grande e nobre
porque, primeiro, ele restituiu-lhes a grandeza e a nobreza a que tinham
direito! Pela palavra vigorosa, por vezes dura, mas destemida porque
verdadeira. Sem medo que lhe tingissem de vermelho ou de qualquer outra cor a
veste e a face. Semelhável na transparência e na frontalidade, só o Papa
Francisco. Mas antes que aparecesse em Roma o “Homem que veio do fim do mundo”,
já o tínhamos cá em Setúbal de Portugal
na pessoa do Pai. Amigo e Confidente Manuel Martins, Bispo sempre vigilante nas
ameias sadinas.
Um estado de alma, da minha parte – e
uma mágoa que, imagino, levou para a sepultura. Nas passadas para o cemitério,
rememorei (e conversei com ele) sobre
aquele dia em que, tendo-me recebido na sua casa rasteira de Leça do Balio, o
convidei para presidir e pregar na nossa
Festa da Senhora do Amparo, dependendo tão só da concordância do actual Bispo
da Madeira, o que nunca veio a acontecer. A ausência deste prelado às exéquias
talvez ajude a entender. Perdoemo-nos uns aos outros…
O santo nonagenário não se comove com
protocolos litúrgicos ou com panegíricos
de circunstância. Nem em vida, muito menos na morte. De tudo o que ficou, só um
apelo veemente sacudia-me, incontido, o corpo e o espírito. Era o grito que
emanava daquela urna levada aos ombros, entre palmas e ovações: “Que da pequena
árvore que eu sou soltem raízes, abram-se os ramos e se expandam mundo além. Na
tua casa, no teu jardim, na tua oficina, na tua rua! Que padres e bispos se não
deixem transformar em “cães mudos”
perante a injustiça e degradação da espécie humana. Convosco nesta cruzada, não
morrerei jamais”!
27.Set.17
Martins Júnior
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