quarta-feira, 27 de setembro de 2017

"PAPA FRANCISCO" EM SETÚBAL – AQUELE QUE ANTES DE SER JÁ O ERA!



Nunca o vi tão alto e pleno como naquele caixão de sete palmos deitado no chão marmóreo do velho mosteiro. Aí vi que os braços subiam,  sedentos e suaves, até formar o vértice das ogivas soberanas da nave principal. Nem vivalma pairava no silêncio daquela hora. Entrei, por mão amiga, que logo se afastou. Ajoelhei-me diante  das quatro tábuas que guardavam o corpo escasso, as mãos franzinas, os olhos de brilho vivo que pouco antes conhecera, a boca frágil que pouco antes me servira o verbo novo com o  sabor a fruta lampa da estação.
         Alia jazia. Só. Sem ninguém a ampará-lo. Como os deserdados sem abrigo que ele tanto acompanhara em vida. De joelhos prestei –lhe culto, falei-lhe como quem reza a um santo no altar. Porque aquele chão, senti-o elevar-se mais alto que a ara-mor da capela gótica do milenar convento da Ordem Hospitalar.
         Pouco tempo durou esta visão etérea. Depois, o templo encheu-se: um batalhão de sacerdotes, um pelotão de bispos, túnicas brancas, vistosas mitras pontiagudas, convidados especiais, autoridades, capas roxas da confraria, cortejo processional, ceroferários, turíbulos esvoaçando incenso. E gente, muita gente: de Setúbal, de Lisboa, de Coimbra, de Aveiro, do Porto e de outras dioceses. Centenas dentro, milhares fora do santuário.  Exímios solistas salmodiavam árias dolentes que a todos nos  tocavam as ‘cordas do coração’.
Presidiu o seu sucessor em Setúbal, o madeirense Bispo José Ornelas Carvalho, que proferiu o discurso exequial.
Juntei-me à multidão anónima e do quanto baixinho sussurravam as pessoas apercebi-me que o que mais agradaria ao “Bispo Vermelho” era ver ali os pobres, os marginalizados, os desempregados, as vítimas inocentes da fome e da solidão. Esses, que formaram o seu cortejo em vida, quanto desejaria ele que o acompanhassem  na romagem derradeira!
Os pobres fizeram-no grande e nobre porque, primeiro, ele restituiu-lhes a grandeza e a nobreza a que tinham direito! Pela palavra vigorosa, por vezes dura, mas destemida porque verdadeira. Sem medo que lhe tingissem de vermelho ou de qualquer outra cor a veste e a face. Semelhável na transparência e na frontalidade, só o Papa Francisco. Mas antes que aparecesse em Roma o “Homem que veio do fim do mundo”,  já o tínhamos cá em Setúbal de Portugal na pessoa do Pai. Amigo e Confidente Manuel Martins, Bispo sempre vigilante nas ameias sadinas.
Um estado de alma, da minha parte – e uma mágoa que, imagino, levou para a sepultura. Nas passadas para o cemitério, rememorei (e conversei com ele) sobre aquele dia em que, tendo-me recebido na sua casa rasteira de Leça do Balio, o convidei para presidir e  pregar na nossa Festa da Senhora do Amparo, dependendo tão só da concordância do actual Bispo da Madeira, o que nunca veio a acontecer. A ausência deste prelado às exéquias talvez ajude a entender. Perdoemo-nos uns aos outros…
O santo nonagenário não se comove com  protocolos litúrgicos ou com panegíricos de circunstância. Nem em vida, muito menos na morte. De tudo o que ficou, só um apelo veemente sacudia-me, incontido, o corpo e o espírito. Era o grito que emanava daquela urna levada aos ombros, entre palmas e ovações: “Que da pequena árvore que eu sou soltem raízes, abram-se os ramos e se expandam mundo além. Na tua casa, no teu jardim, na tua oficina, na tua rua! Que padres e bispos se não deixem  transformar em “cães mudos” perante a injustiça e degradação da espécie humana. Convosco nesta cruzada, não morrerei jamais”!

27.Set.17
Martins Júnior   


    

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