domingo, 29 de julho de 2018

“TODOS OS ELOGIOS FÚNEBRES SÃO RIDÍCULOS”


                                                         

Bora, bora, no meio de tanta festa – e da grossa – vir tocar a finados com essa dos elogios fúnebres! É o que dirá toda a gente que, porventura, deixar cair os olhos neste título. Para cúmulo, peguei na frase e apertei-a entre comas, levado pelo humor de Fernando Pessoa quando escreveu que “Todas as cartas de amor são ridículas”.
Mas esclareço o porquê desta minha opção em tempo de folguedo geral. É que não queria ver passar este mês de Julho, tão evocativo de factos e personalidades, sem deixar um sublinhado, mesmo breve, sobre os rituais e protocolos da praxe exequial. Badalados foram os 100 anos de Mandela, lamentado foi o passamento dos dois pioneiros do Serviço Nacional de Saúde,  António Arnaut e João Semedo, entre outras muitas figuras da ribalta pública. Chega então a hora da brigada dos microfones reumáticos, chorosos, a pedir depoimento a um, comentário a outro, notas biográficas àqueloutro, quase sempre junto da urna ou à saída da basílica. Mais impressiva, porém, e enfadonha é a “oração de sapiência”  (há quem lhe chame elegia e elogio fúnebre ou até panegírico) em cima do morto.
Coube-me também a rifa de assistir nesta semana a uma dessas paradas fúnebres., realizada numa das igrejas desta Região. E lá subiram ao púlpito os profissionais da palavra obrigatória. Começam a desfiar, fibra a fibra, dobra a dobra, a vida do protagonista, ali cego, surdo e mudo. Depois vêm os textos de escritores, os costumeiros do regime, se possível uma criancinha que nem conheceu o dito cujo. Palavras arrumadas, empacotadas ao milímetro, embalsamadas, tudo em cima do defunto que,  não o notámos, mas deve ter dado umas boas voltas dentro do caixão, talvez repetindo o velho fado coimbrão: “Quando eu morrer, rosas brancas/ Para mim ninguém as corte/ Quem as não teve na vida/ De que lhe servem na morte”.
                                               

É aqui que situo a razão do ridículo, colado e envernizado em todos esses cerimoniais. Quem procurou cumprir o seu estatuto existencial dispensa os discursos opulentos. A militância sofrida com que aceitaram os combates da vida é a mesma com que rejeitam o palavreado dos baús funerários, a que chamam elogios. “Deixem-me em paz,” dirão os inquilinos da urna. E alguns até perguntarão: “Onde estavas tu, galante falante, quando eu, em vida, precisei do teu apoio”? Também os padres da Inquisição cantavam ofícios sagrados àquele que tinham condenado  à fogueira…
O maior elogio que se lhe pode fazer – e o único que o conforta – consiste em mobilizar os vivos a que peguem aos ombros o espólio virtuoso do defunto e o levem mais além, seja onde for, para dar continuidade ao seu ideário e à sua luta. Tudo o que se fizer – palavra, canto ou silêncio – para arrastar o auditório  na onda construtiva do homenageado constitui o maior poema épico na hora final  da despedida. As baforadas de incenso extinguem-se antes até de extinguir-se o corpo. O nosso propósito e a nossa acção é que perpetuarão a memória dos que “da lei da morte se vão libertando”.
  Para confirmar a lógica desta opção, acabo de ler em El País um título que sintetiza tudo quanto quero dizer: “É esta a hora crucial do Papa Francisco: o êxito das suas reformas determinará o legado do Pontífice”. E eu acrescento: De nada lhe serve ser herói, sábio, santo, pioneiro, cavaleiro andante vitorioso e ‘superstar’ se a sua obra – melhor, a sua luta - ficar com ele no mesmo caixão!
                                                  

Pela minha parte, Mandela, Arnaut, Semedo, podeis contar comigo para que seja digna e universal a condição humana e para que essa dignidade comece pela saúde global. Não tenho palavras, quero oferecer-vos acção!

29.Jul.18
Martins Júnior    

Sem comentários:

Enviar um comentário