Hoje,
fim de semana, último de Setembro, visto o traje regionalista e meto-me no meio
da multidão que acorre aos imponentes cortejos processionais em louvor das
Senhoras Padroeiras de cada burgo, do maior ao mais pequeno. Como não podia
deixar de ser, a protagonista é a imagem da Senhora, alçada no andor. Mas, quer
no andor quer na Senhora, ‘outro valor mais alto se alevanta’ – é o ouro, os
anéis, as filigranas, os cordões tamanhos que começam no pescoço da santa e escorrem-lhe
até aos pés. E tão pesados que a escultura miniatural parece ajoujada não com o
peso do Menino, mas com a carga desproporcional do ouro que transporta.
O
espectáculo é deveras fascinante. E, paradoxalmente, inquietante. Testemunho de
ex-votos pios, situações aflitivas, profundas dores sofridas, aquela montra de
ourivesaria garbosamente ostentada no peito da estatueta da Padroeira reluz ao
sol de verão e comove, encanta, seduz os olhos que nela posam. Não tenho dúvida
alguma que subjectivamente cada precioso fio que ali vai reflecte um acto de
fé. Entretanto, resta saber o como e o porquê desse particular figurino da fé.
Os
breves parágrafos que se seguem não têm outro objectivo senão o de abrir
necessárias pistas de pensamento e debate.
Puxando
para trás a fita do tempo, verificamos que desde sempre o ser humano entendeu o
ouro como o dom mais precioso que alguém pode oferecer a quem ama. A expressão ‘coração
de ouro’ sintetiza a beleza personificada, a dádiva total. Assim se revestiam os deuses da mitologia pagã.
Assim se adornava Júpiter, o Deus-dos-deuses. Assim fez o povo hebreu no deserto
quando as mulheres e donzelas arrancaram os adornos dourados que traziam
colados ao corpo e, com eles, mandaram fundir na famosa e blasfema imagem do “Bezerro
de Ouro”. Os reis, os príncipes, os aristocratas tinham no ouro as principais
credenciais do seu poder e da sua supremacia classista.
Se
era este o protocolo de homenagem aos mortais, como não havia de sê-lo para com
a divindade e a sua corte. Aí, os templos disseram adeus à `’humilhação’ das
catacumbas e alcandoraram-se na opulência ostentatória, horizontalmente no mesmo trono imperial de Constantino Magno.
Desde então, deu-se ao povo crente a cartilha aristocrática do devocionismo
anti-evangélico: se queres honrar a Deus, entrega-lhe ouro, em espécie ou
equivalente. E assim começou o sacro império romano-católico, ‘com toda a pompa
e circunstância que a Deus se devem’. E em se tratando de uma deusa-mulher,
redobrados deveriam ser os requintes de galantaria no protocolo do santuário.
Estava
consumado em letra de lei factual e tangível
o estilo da homenagem às Santas Padroeiras. Questiona-se, porém, (e é
legítimo fazê-lo) se será assim a mais digna e sensata homenagem a essa Grande
Mulher e Senhora, a jovem nazarena, irmanada com o povo modesto da sua terra?...
Terá sentido algum que uma mãe se vista de gala e se cubra de ouro fino para
receber nos braços um filho assassinado pelos poderosos?... Não assim a Pietá de Miguel Ângelo. Como reagiriam o
nosso pai e a nossa mãe se, com o mesmo estilo, pretendêssemos honrar a sua
memória?...Não será ridículo ver uma imagem amarrada, afogada de ouro, a Mãe e
o Menino?...
Duas
outras perguntas que cavam mais fundo: Não significará um ultraje a um povo
pobre e explorado apresentar-lhe como “modelo de passerelle” aquela que sente e
sofre as dores e carências da sua gente?... Finalmente, não serão resquícios de
religião pagã e idolátrica todas estas encenações antropomórficas de vaidade,
em aberta contradição com a idiossincrasia ideológica e existencial de Maria de
Nazaré?...
Enquanto
voam perto ou longe estas legítimas inquietações, abro a carta de Tiago,
Educador da Fé, naquele texto que será lido, sábado e domingo, em
todos os templos: “Ai de vós, ricos. O vosso ouro e a vossa prata
enferrujaram-se e a ferrugem deles dará
testemunho contra vós e devorará a vossa carne como um fogo! (Tiag.5,3). O
ouro-ferrugem devoradora não será, decididamente, a melhor homenagem à Santa
Patrona.
Expressão
maior e mais belo que todo o ouro e toda a prata foram aquelas centenas, talvez
milhares, de açucenas-rosa, cheirando a perfume silvestre, que crianças,
jovens, homens, mulheres em cortejo festivo depositaram ontem diante da imagem
miniatural da Senhora do Bom Despacho. Bem hajam!
29.Set.18
Martins Júnior