sábado, 29 de setembro de 2018

PESO DE OURO SEM PERFUME


Hoje, fim de semana, último de Setembro, visto o traje regionalista e meto-me no meio da multidão que acorre aos imponentes cortejos processionais em louvor das Senhoras Padroeiras de cada burgo, do maior ao mais pequeno. Como não podia deixar de ser, a protagonista é a imagem da Senhora, alçada no andor. Mas, quer no andor quer na Senhora, ‘outro valor mais alto se alevanta’ – é o ouro, os anéis, as filigranas, os cordões tamanhos que começam no pescoço da santa e escorrem-lhe até aos pés. E tão pesados que a escultura miniatural parece ajoujada não com o peso do Menino, mas com a carga desproporcional do ouro que transporta.
O espectáculo é deveras fascinante. E, paradoxalmente, inquietante. Testemunho de ex-votos pios, situações aflitivas, profundas dores sofridas, aquela montra de ourivesaria garbosamente ostentada no peito da estatueta da Padroeira reluz ao sol de verão e comove, encanta, seduz os olhos que nela posam. Não tenho dúvida alguma que subjectivamente cada precioso fio que ali vai reflecte um acto de fé. Entretanto, resta saber o como e o porquê desse particular figurino da fé.
Os breves parágrafos que se seguem não têm outro objectivo senão o de abrir necessárias pistas de pensamento e debate.
Puxando para trás a fita do tempo, verificamos que desde sempre o ser humano entendeu o ouro como o dom mais precioso que alguém pode oferecer a quem ama. A expressão ‘coração de ouro’ sintetiza a beleza personificada, a dádiva total.  Assim se revestiam os deuses da mitologia pagã. Assim se adornava Júpiter, o Deus-dos-deuses. Assim fez o povo hebreu no deserto quando as mulheres e donzelas arrancaram os adornos dourados que traziam colados ao corpo e, com eles, mandaram fundir na famosa e blasfema imagem do “Bezerro de Ouro”. Os reis, os príncipes, os aristocratas tinham no ouro as principais credenciais do seu poder e da sua supremacia classista.

Se era este o protocolo de homenagem aos mortais, como não havia de sê-lo para com a divindade e a sua corte. Aí, os templos disseram adeus à `’humilhação’ das catacumbas e alcandoraram-se na opulência ostentatória, horizontalmente  no mesmo trono imperial de Constantino Magno. Desde então, deu-se ao povo crente a cartilha aristocrática do devocionismo anti-evangélico: se queres honrar a Deus, entrega-lhe ouro, em espécie ou equivalente. E assim começou o sacro império romano-católico, ‘com toda a pompa e circunstância que a Deus se devem’. E em se tratando de uma deusa-mulher, redobrados deveriam ser os requintes de galantaria no protocolo do santuário.
Estava consumado em letra de lei factual e tangível  o estilo da homenagem às Santas Padroeiras. Questiona-se, porém, (e é legítimo fazê-lo)  se será assim  a mais digna e sensata homenagem a essa Grande Mulher e Senhora, a jovem nazarena, irmanada com o povo modesto da sua terra?... Terá sentido algum que uma mãe se vista de gala e se cubra de ouro fino para receber nos braços um filho assassinado pelos poderosos?... Não assim a Pietá de Miguel Ângelo. Como reagiriam o nosso pai e a nossa mãe se, com o mesmo estilo, pretendêssemos honrar a sua memória?...Não será ridículo ver uma imagem amarrada, afogada de ouro, a Mãe e o Menino?...
Duas outras perguntas que cavam mais fundo: Não significará um ultraje a um povo pobre e explorado apresentar-lhe como “modelo de passerelle” aquela que sente e sofre as dores e carências da sua gente?... Finalmente, não serão resquícios de religião pagã e idolátrica todas estas encenações antropomórficas de vaidade, em aberta contradição com a idiossincrasia ideológica e existencial de Maria de Nazaré?...

Enquanto voam perto ou longe estas legítimas inquietações, abro a carta de Tiago, Educador da Fé, naquele texto que será lido, sábado e domingo,   em todos os templos: “Ai de vós, ricos. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se  e a ferrugem deles dará testemunho contra vós e devorará a vossa carne como um fogo! (Tiag.5,3). O ouro-ferrugem devoradora não será, decididamente, a melhor homenagem à Santa Patrona.
Expressão maior e mais belo que todo o ouro e toda a prata foram aquelas centenas, talvez milhares, de açucenas-rosa, cheirando a perfume silvestre, que crianças, jovens, homens, mulheres em cortejo festivo depositaram ontem diante da imagem miniatural da Senhora do Bom Despacho. Bem hajam!
29.Set.18
Martins Júnior




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