É a de um Dia Ímpar esta crónica –
ímpar no cômputo do calendário, 11 do mês, ímpar sobretudo pela viva e
revivalista comemoração da história de um Povo situado na periferia urbana da
cidade de Machico – a Ribeira Seca.
Cumprindo
a secular tradição de evocar a memória e prestar homenagem, desde 1692, a Maria
de Nazaré, Senhora do Amparo, a população ribassequense juntou-lhe as vivências
centenárias dos seus antepassados e conjugou-as com as diversas fases de um
percurso feito de há 50 anos até ao presente.
Focalizados
na Protagonista reverencial da Festa, os
habitantes da Ribeira Seca iniciaram a sua marcha, a partir da velha capelinha
da Senhora do Amparo, situada no sítio do Lombo do Xeque e construída pelo
capitão-secretário da Câmara Municipal de Machico, Francisco Dias Franco, na
data citada, 1692. Foi como que a reincarnação de todo um passado, marcado pela
colonia em que os ‘servos da gleba’, os caseiros, mirravam de sol a sol sob a
canga dos senhorios. Ali prestou-se gratidão, homenagem, solidariedade póstuma
às gerações de outrora confinadas às montanhas deste vale, privadas dos meios
mais elementares para uma vida familiar e social: sem estradas, sem luz, sem
água potável.
O
cortejo pedonal, representativo da marcha do passado para o presente, fez-se
rumo à actual sede da comunidade, o templo construído em 1963 e renovado em
1999. Celebrou-se, então, a Eucaristia com o mesmo ritual deste meio-século, a
comunicação directa e coloquial entre o altar e os participantes, o
acompanhamento da nossa Tuna, mas enriquecida a cerimónia pela presença de dois
grandes sacerdotes, o Padre Pedro Nóbrega e o Padre José Luís Rodrigues. Foram
momentos impressivos inesquecíveis, não pela oratória balofa característica de
celebrações congéneres, mas pelo acurado sentido pedagógico-didáctico que o
Padre Pedro imprimiu à sua lição e pela
visão de futuro – um futuro sombrio, talvez inexistente - que o Padre José Luís
vaticinou para uma Igreja Regional, consequência dos mais recentes ‘exemplares’
clericais e o ‘anacrónico triunfalismo’ de uma hierarquia ‘divorciada da vida dos
cristãos’.
E
foi do futuro desta comunidade que se fez, de seguida, a terceira fase da marcha pelas estradas e
caminhos locais, com três ´picos’ plenos de simbologia e realismo: a Imagem da
Senhora do Amparo transportada pelos jovens neste longo percurso, a
participação da Filarmónica da Atouguia Baleira de Peniche e a Banda Municipal
de Machico, sendo que a ‘cereja em cima do bolo’ brilhou aos olhos do muito povo acompanhante,
num desfile digno de ver e deliciar: em vez das opas, capas e capinhas das Irmandades
da Senhora das Lágrimas, dos Socorros e do Último Suspiro, ou as de São Lázaro
e de Santa Ifigénia (respeitamos quem as tenha e faça), aqui as crianças,
jovens e adultos representativos de todos os sítios, desfilaram com o colorido
da indumentária festiva, confecionada pelos próprios, as saias das raparigas
ostentando as mensagens, bordadas à mão, de SAÚDE, CULTURA, PÃO, VIDA,
LIBERDADE, AMOR, FELICIDADE – os melhores votos que Maria de Nazaré, a Mãe do
Amparo, pode desejar aos filhos.
Ao terminar a homenagem culto-espiritual à Protagonista-Patrona e Padroeira da Ribeira Seca, senti-me no dever de, em poucas palavras, registar a ornamentação cheia de leveza e graciosidade do nosso templo, onde só existem duas reminiscências hagiográficas: a escultura da Senhora do Amparo, evocativa de Maria histórica de Nazaré – não da “Senhora que faz favores a baixo preço”, como disse o Papa Francisco em Fátima, nem as piedosas novelas de milhentas aparições, improváveis e duvidosas, a maior parte e com as quais se explora, abusivamente, a frágil mentalidade de um povo híper-crente.
A
outra representação hagiográfica neste templo é a efígie do Padre Mário Tavares
Figueira, para nós um Santo que ‘vimos, ouvimos e lemos’ e tocámos de corpo e
alma, um Santo pela robustez do seu tronco ideológico-teológico, pela telúrica
osmose da sua fé onde se cruzavam e cresciam o corpóreo e o espiritual, o
humano e o divino. E, estruturalmente para nós, um Santo que nunca abandonou a
população indefesa da Ribeira Seca durante a travessia no exílio de décadas de
ostracismo a que nos atirou a hierarquia diocesana em pornográfico conúbio com
o poder político. Desde a sua morte, temo-lo aqui na nossa igreja onde ele
tantas vezes partilhou as nossas dores e a nossa resistência, sofreu com as
ameaças, os medos e os danos que o conluio político-religioso da Madeira infligiu
a este povo. Formulei e reitero de novo o voto-promessa de que, venha quem
vier, nunca se retire deste templo, a efígie do Padre Mário Tavares Figueira,
junto da escultura da Senhora do Amparo – as duas únicas imagens de santos
presentes neste lugar sagrado. Sem descurar a magnitude espiritual de milhares
de outras figuras hagiográficas da história da Igreja – e não só da Igreja – o nosso
templo não está vocacionado para museu de estátuas, mas para Casa de Oração e
Progressão Evangélica.
Esta
é a crónica do dia 11 – assim comecei. Mas fiquei-me apenas pela primeira
página, a homenagem à Protagonista Sacra,
Maria Histórica, a da Nazaré, sob o título de Senhora do Amparo, uma opção
necessária mas muitas vezes obliterada ou secundarizada nos arraiais do mundo.
Permitam-me
anexar os dias ímpares 11 e 13, complementando depois a narração com a segunda
página: o histórico do Povo ribassequense através da música, verso e dança no
palco aberto do nosso adro. Até já.
11-13.Set.22
Martins
Júnior
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