Terra
quente, terra fértil a deste verão seco e solarengo, de onde brotam aos
borbotões feixes irresistíveis, quase explosivos, de eventos, festas,
concertos, arraiais, por tudo quanto mexe à face da terra e, sem medida, na mão
pequena da Ilha.
Pululam,
excitantes, escaldantes, as manifestações de índole religiosa, cujos programas
batem recordes de audiências presenciais com laivos de paganismo fanático em
que os estalos pirotécnicos se misturam
às envergonhadas vítimas carnais condenadas a entrar na fogueira do
tempo das cavernas. A ajudar à festa entram os comunicadores do povo, munidos
da arma fatal chamada microfone. Achei tão delicioso quanto maquiavélico um
desses ‘embaixadores da fala’ referir-se à Festa do Senhor Bom Jesus da Ponta
Delgada, definindo a sua magnitude nestes termos: “Este ano o “Bom Jesus” teve
20 vacas, Mas já houve tempo que eram 50”.
Em
Roma, o Papa Francisco também entrou na onda e, já noutro registo – solene e
grave – procedeu à beatificação de um seu antecessor, João Paulo I, cujo
pontificado não durou mais que um mês e meio. Recuso-me a admitir que terá sido
feita esta promoção eclesiástica propositadamente em tempo de silly season, para deixar passar em claro o enigma (crime e
assassinato, há quem o prove) da morte misteriosa do “Papa do Sorriso”. O
semblante carregado e sombrio do Papa Francisco na hora da beatificação não
augura bons indícios sobre o caso,
que ainda não foi suficientemente esclarecido pelo Vaticano, tantas são as
discrepâncias da narrativa e as reticências até agora escondidas.
Na
paisagem polícroma (e quantas vezes contraditória) deste surto festivo, ao qual
não sou alheio, também entro, embora sem deixar-me diluir no tropel ruidoso dos
foguetes, dos pavios de cera (protegidos por copos de cerveja regional), das
procissões teatrais. Entro e o chão que piso está naquela Carta que Paulo
escreveu a Filémon, sobre a qual me debrucei no dia de ontem. O Apóstolo das
Gentes teria de tomar uma decisão sobre Onésimo escravo, ao serviço de Filémon.
Podia fazê-lo de forma unilateral e autocrática, mas não o fez. Pediu o parecer
ao próprio Filémon, em termos tais que mais parecia um abraço de paz do que uma
consulta formal.
Deve
ter começado aí a vocação primordial da Igreja: a sinodalidade – o caminhar
juntos, lado a lado, hierarquia e povo,
líderes e liderados, dirigentes e dirigidos. Assim foi a história da Igreja
Católica durante os cinco primeiros séculos, tendo ficado, como princípios
reguladores da acção pastoral, estes dois normativos: “O que a muitos diz
respeito, por muitos tem de ser resolvido” e, mais incisivo e pragmático: “Podem
rejeitar o bispo que o povo não escolheu”. É incontornável consultar a obra do
ilustre Padre Yves Congar, O.P., Os
Leigos na Igreja.
Depois,
os ‘Príncipes Pontifícios’, aniquilando toda a mensagem do Fundador de Nazaré
(mas auto-nomeando-se seus representantes) moldaram-se ao Direito Romano, com
base no ius utendi et abutendi, (de
perseguida passou a perseguidora) usando e abusando de um poder monárquico e
absoluto. Um dos efeitos mais dramáticos para o futuro da Instituição
Eclesiástica Romana foi a excomunhão papal de Lutero, que deu origem à
proliferação de outras centenas de credos e seitas oriundas do Protestantismo.
Já antes, em 1054, tinha sucedido o mesmo com a excomunhão do Patriarca Miguel
Cerulário, de cujo conflito nasceu a Igreja Ortodoxa, desde então separada de
Roma.
A
ignorância em que se mantinha o povo e a opulência dos bens da Igreja foram as
alavancas do Imperium em que as
hierarquias foram ganhando foros imperialistas, absolutistas, inapeláveis. E
assim navega neste mar vago da história das instituições. É supinamente
ridículo o xadrez sobre o qual, em chegando Junho e Julho, se divertem os
mandantes do suposto sagrado – cardeais, núncios apostólicos (que mais não são
que embaixadores políticos do Estado Vaticano) enfim, arcebispos, bispos e
monsenhores – e agarram as peças do tabuleiro, deliciando-se em empurra-las
para cá e para lá, ao toque de um espírito oculto, inexistente, num salão
doirado. O povo cristão, o único destinatário das decisões, fica lá fora,
desimportado e inerte.
Conforta-me
o olhar vigilante do Papa Francisco que abandona o trono monárquico e vai
escutar a voz – gemido ou pranto, apoteose ou cântico – que das inóspitas
periferias querem fazer-se ouvir. É ele o genuíno intérprete da Igreja nascida
das fontes que fertilizaram cinco séculos de Cristianismo.
05.Set.22
Martins Júnior
Sem comentários:
Enviar um comentário