segunda-feira, 5 de setembro de 2022

FESTIVAIS INFORMES, CONFORMES E DISFORMES

                                                                          


Terra quente, terra fértil a deste verão seco e solarengo, de onde brotam aos borbotões feixes irresistíveis, quase explosivos, de eventos, festas, concertos, arraiais, por tudo quanto mexe à face da terra e, sem medida, na mão pequena da Ilha.

Pululam, excitantes, escaldantes, as manifestações de índole religiosa, cujos programas batem recordes de audiências presenciais com laivos de paganismo fanático em que os estalos pirotécnicos se misturam  às envergonhadas vítimas carnais condenadas a entrar na fogueira do tempo das cavernas. A ajudar à festa entram os comunicadores do povo, munidos da arma fatal chamada microfone. Achei tão delicioso quanto maquiavélico um desses ‘embaixadores da fala’ referir-se à Festa do Senhor Bom Jesus da Ponta Delgada, definindo a sua magnitude nestes termos: “Este ano o “Bom Jesus” teve 20 vacas, Mas já houve tempo que eram 50”.

Em Roma, o Papa Francisco também entrou na onda e, já noutro registo – solene e grave – procedeu à beatificação de um seu antecessor, João Paulo I, cujo pontificado não durou mais que um mês e meio. Recuso-me a admitir que terá sido feita esta promoção eclesiástica propositadamente  em tempo de silly season, para deixar passar em claro o enigma (crime e assassinato, há quem o prove) da morte misteriosa do “Papa do Sorriso”. O semblante carregado e sombrio do Papa Francisco na hora da beatificação não augura bons indícios sobre o caso, que ainda não foi suficientemente esclarecido pelo Vaticano, tantas são as discrepâncias da narrativa e as reticências até agora escondidas.

Na paisagem polícroma (e quantas vezes contraditória) deste surto festivo, ao qual não sou alheio, também entro, embora sem deixar-me diluir no tropel ruidoso dos foguetes, dos pavios de cera (protegidos por copos de cerveja regional), das procissões teatrais. Entro e o chão que piso está naquela Carta que Paulo escreveu a Filémon, sobre a qual me debrucei no dia de ontem. O Apóstolo das Gentes teria de tomar uma decisão sobre Onésimo escravo, ao serviço de Filémon. Podia fazê-lo de forma unilateral e autocrática, mas não o fez. Pediu o parecer ao próprio Filémon, em termos tais que mais parecia um abraço de paz do que uma consulta formal.

Deve ter começado aí a vocação primordial da Igreja: a sinodalidade – o caminhar juntos, lado a lado,  hierarquia e povo, líderes e liderados, dirigentes e dirigidos. Assim foi a história da Igreja Católica durante os cinco primeiros séculos, tendo ficado, como princípios reguladores da acção pastoral, estes dois normativos: “O que a muitos diz respeito, por muitos tem de ser resolvido” e, mais incisivo e pragmático: “Podem rejeitar o bispo que o povo não escolheu”. É incontornável consultar a obra do ilustre Padre Yves Congar, O.P., Os Leigos na Igreja.

Depois, os ‘Príncipes Pontifícios’, aniquilando toda a mensagem do Fundador de Nazaré (mas auto-nomeando-se seus representantes) moldaram-se ao Direito Romano, com base no ius utendi et abutendi, (de perseguida passou a perseguidora) usando e abusando de um poder monárquico e absoluto. Um dos efeitos mais dramáticos para o futuro da Instituição Eclesiástica Romana foi a excomunhão papal de Lutero, que deu origem à proliferação de outras centenas de credos e seitas oriundas do Protestantismo. Já antes, em 1054, tinha sucedido o mesmo com a excomunhão do Patriarca Miguel Cerulário, de cujo conflito nasceu a Igreja Ortodoxa, desde então separada de Roma.

A ignorância em que se mantinha o povo e a opulência dos bens da Igreja foram as alavancas do Imperium em que as hierarquias foram ganhando foros imperialistas, absolutistas, inapeláveis. E assim navega neste mar vago da história das instituições. É supinamente ridículo o xadrez sobre o qual, em chegando Junho e Julho, se divertem os mandantes do suposto sagrado – cardeais, núncios apostólicos (que mais não são que embaixadores políticos do Estado Vaticano) enfim, arcebispos, bispos e monsenhores – e agarram as peças do tabuleiro, deliciando-se em empurra-las para cá e para lá, ao toque de um espírito oculto, inexistente, num salão doirado. O povo cristão, o único destinatário das decisões, fica lá fora, desimportado e inerte.

Conforta-me o olhar vigilante do Papa Francisco que abandona o trono monárquico e vai escutar a voz – gemido ou pranto, apoteose ou cântico – que das inóspitas periferias querem fazer-se ouvir. É ele o genuíno intérprete da Igreja nascida das fontes que fertilizaram cinco séculos de Cristianismo.

 

05.Set.22

Martins Júnior       

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