sábado, 6 de maio de 2023

83 ANOS DE CONCORDATA, ANTES FOSSEM DE DISCORDATA…

                                                                                                


         São 83 velas que poucos deram por elas. Os que se lembraram de apagá-las em cima de um bolo armadilhado  decerto compararam aos últimos acontecimentos que vinte milhões de olhos portugueses foram obrigados a contemplar ontem e anteontem na capital do país. Acordos e desacordos, enlaces e desenlaces, enfim, concordatas e discordatas domésticas, as “ùltimas Grandes Guerras” em Portugal, a que alguém já deu o sobrenome de “guerras do alecrim e da manjerona”.

         Decifrando a espécie de charada séria a que me venho referindo:

         Em 7 de Maio de 1940, Oliveira Salazar e Eugénio Pacelli, o Papa Pio XII (aquele que teceu largos elogios a Adolf Hitler) celebraram uma aliança político-religiosa, conhecida por “Concordata entre Portugal e a Santa Sé”, a que foi anexado o famoso “Acordo Missionário” para as colónias portuguesas.

          É uma tentação que vem do fundo da história: a ‘união de facto’, incestuosa porque híbrida, entre dois poderes, o político e o religioso. Razão primeira e última: são os mesmos os destinatários, a mesma massa humana, que tanto compra no balcão  do governo como no altar da igreja. Como tal, interessa aos dois produtores ter na mão os mesmos consumidores. Aqui, colocar-se-á  um ponto de honra: quem ganha e quem perde neste confronto; o produtor ou o consumidor, o poder bicéfalo ou o súbdito natural?

         A todos os regimes interessa-lhes a coexistência pacífica, a diplomacia que é sobretudo cínico-económica, aquilo que vem bem expresso nos  ‘jogos de cintura’ ou na velha máxima: “se não podes com o teu adversário junta-te a ele e ganharás”. Mesmo na dialéctica de sistemas rivais, é essa a estratégia mais eficaz. Porque  nos desenvolvimentos subsequentes é que estará o lucro, sendo certo e infalível que, tal como a levadia que bate na rocha, quem sai esmagado é o mexilhão.

         A Concordata de 1940 não foge a este escantilhão comprovado pela experiência. Após a implantação da República em 1910 e o Decreto da Separação do Estado das Igrejas, em 1911, a que se seguiram vagas de incerteza, umas vezes triunfantes para o poder político, outras favoráveis à mitra eclesiástica, mas sempre inseguras, efémeras, foi assinada em Roma  a Concordata entre os dois Estados: da parte da Igreja Católica, o Cardeal Luigi Magleone, Secretário de Estado da Santa Sé (que mal soa esta adjectivação à Igreja de Jesus de Nazaré!) e. da parte do Estado Português, Mário Figueiredo, antigo ministro da Justiça e dos Cultos, Eduardo Augusto Marques, antigo ministro das Colónias e Vasco Caetano de Quevedo, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário junto da Santa Sé.

         Tal como sucede com a Constituição dos Estados soberanos, também a Concordata passou         por aperfeiçoamentos e correcções, a última das quais em 18 de Maio de 2004, assinada por José Manuel Durão Barroso (Estado Português) e Cardeal Augusto Sodano (Estado da Santa Sé).

         Acordos, convénios, tratados fazem parte de todas as sociedades, da maior à mais pequena. O que importa é sopesar os termos e os efeitos daí emergentes e estáveis. No tocante à Concordata, seria desde logo impensável  que Salazar (antigo seminarista) aceitasse uma transacção de que saísse perdedor. Não restam dúvidas da derrota da Igreja, personificada no Cardeal Cerejeira, a sua subserviência e, mais, o seu colaboracionismo ao regime salazarista, auto-silenciada na perseguição a católicos e padres progressistas, culminando esta abjecta cobardia na expulsão do país de Dom Manuel Ferreira  Gomes, bispo do Porto, após a carta aberta escrita a Salazar em defesa dos trabalhadores rurais da sua diocese. O já citado “Acordo Missionáro” mais não foi que uma peça instrutória do mais requintado colonialismo português que consolidou, se não de jure, mas de facto, o privilégio da nomeação de bispos dependente do agrément estatal.                                             


         Na comemoração desta efeméride, relevo aqui três cenários ocorridos na nossa Região,  declarados  resquícios do ‘Estado Novo’ na ‘Madeira Nova’, por cardada e maquiavélica “concordata” entre um petit-salazar e um petit-cerejeira reincarnado em vestes episcopais.

1)    A perseguição aos chamados “Padres do Pombal”, um grupo de sacerdotes de primeira água, residentes em comunidade na Rua do Pombal, Funchal, os quais viram-se obrigados a abandonar a Ilha, após o rebentamento de um violento explosivo na sua própria casa. Isto, em plena vivência do “25 de Abril”.

2)    O assalto e ocupação da igreja e residência paroquial da Ribeira Seca, Machico, em 1985, por 70 efectivos policiais durante 18 dias e 18 noites. Sem mandado judicial, apenas a mando do governo regional e do bispo diocesano. Ainda estão vivos os protagonistas do atentado.

3)    O processo judicial movido pelo governo regional contra o autor destas linhas, então padre suspenso a divinis, sob proposta e a pedido do bispo, apoiado na Base XV da Concordata de 1940 que conferia ao Estado desencadear acção nos tribunais  contra os clérigos “ pelo exercício abusivo de jurisdição e de funções eclesiásticas”.  A pretendida demanda resultou em vergonha e humilhação para as duas entidades queixosas, porque na hora do julgamento foi provado que a citada Base XV da Concordata de 1940 tinha sido revogada pela revisão da Concordata de 2004. A audiência nem chegou a começar, foi considerada nula a pretensão. Sem apelo nem agravo.  

Apraz-me recordar este mísero cortejo de agressões, atrocidades, massacres que a polícia secreta de Salazar escondeu e afogou nas prisões, exílios, deportações anónimas, à sombra maléfica e castradora da Concordata, hoje com 83 anos, decrépita e moribunda do ‘Estado Novo’, mas obsessiva por renascer como réptil enroscado na casca da ‘Madeira Nova’.

Por isso, em vez de Concordata, melhor  tivesse sido assinada uma veemente “Discordata”!

 

05. Mai.23

Martins Júnior  

 

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