Se
“de boas intenções está o inferno cheio”, de malditas guerras está a terra
prenhe. Os armamentistas enriquecem, os pobres mirram de fome, do pão que o
diabo amassou nas forjas dos fabricantes, os poderosos vomitam ódio pelas
narinas fossilizadas e os media agradecem, não lhes falta ementa para
entreter o vulgo.
E
não se esqueça a religião pacóvia que, sem pejo nem pudor, chama Deus e Nossa
Senhora ao campo da metralha, levando os crentes a fazer de cada conta do
rosário outras tantas granadas de mão contra os “inimigos” que são também
filhos do mesmo Deus e da mesma Mãe.
É
disto que me ocupo hoje, desta insuportável, explosiva, repugnante massa híbrida: fé e armas. Para quem segue a
genealogia das religiões, nada de novo, a começar pelo nosso Portugal missionário
e colonizador, com as duas faces na mesma bandeira: a Fé e o Império! Está no
ADN das religiões oficiais, desde 313, a malfadada aliança entre o Imperador
Constantino e a Igreja Católica, o mesmo monstro bicéfalo, umas vezes a cabeça
do Império, outras a da (má)-Fé, ora em disputa pelo maior quinhão de poder,
ora em conúbio incestuoso na mesma cama de interesses comunicantes. Basta
rebobinar o filme e lá estão em pódios gémeos, a religião e o poder, a cruz romana
e a cruz suástica, Pio XII e Hitler, mutatis mutandis.
Mas
hoje quero remeter os meus companheiros da estrada bloguer para uma reportagem
do distinto jornalista António Marujo,
editor do programa “Sete Margens”. Vem numa recente “Revista” do semanário Expresso
e tem por conteúdo o problema da nomeação e desempenho dos capelães
militares na guerra colonial portuguesa, entre 1961 e 1974,
António
Marujo coloca como protagonista o Padre Arsénio Puim, açoriano de origem e capelão
militar – “capelão-à-força”, posso dizer – e mais tarde expulso do Exército, devido
às posições tomadas, quer entre os combatentes do seu batalhão, quer pelo apoio
social dado à população indígena da Guiné-Bissau. Foi o segundo capelão expulso
– o primeiro foi o Padre Mário de Oliveira, de Macieira da Lixa – a que se
seguiram outros casos de recusa e até de deserção dos próprios padres
mobilizados para assistência
militar em campo de guerra ultramarina.
A consciência dos valores cristãos em litígio com os objectivos táticos e
estratégicos das operações bélicas em causa foram o móbil das decisões assumidas
pelo capelão Arsénio Puim e seus colegas contestatários. De entre muitas
citações, aduzo a seguinte, retirada do seu ‘diário’:
Celebrei hoje a missa a uma larga
frequência de soldados. O Evangelho fala de amor ao inimigo, da misericórdia para
com os outros. Mas que poderia eu dizer de amor e perdão a estes rapazes, horas
antes da sua partida para uma operação
de destruição e morte, contra a verdade e a razão? Não vão defender nada, vão
matar para calar, pondo também em risco a própria vida. Uma chusma de matadores
inconscientes.
Sobre
o papel da Igreja nesta conjuntura, declarou frontalmente:
Eu
não escolhi vir para capelão militar. Fui mandado (sem qualquer palavra de
consulta ou informação do meu prelado) para uma acomodação da Igreja e
distorção do Evangelho e do sacerdócio, vestindo uma farda antievangélica.
Recusou-se
a usar a G3, a arma distribuída aos militares combatentes. E a propósito de
rezar o terço pelos ‘turras’ (nome dado aos africanos em guerra) a pedir a sua
conversão, Arsénio Puim sublinhava:
O
que será isto? Conversão a quê? Ao evangelho português segundo Salazar?...
Agradeço
a reportagem de António Marujo, li-a com muita emoção, porque identifico-me com
os colegas contestatários da guerra colonial, passei idênticos confrontos com a
minha consciência e com as estruturas
político-eclesiásticas do Exército. Trago ao meu blogue a informação de António
Marujo, por três motivos:
Primeiro,
por ver que, mesmo após a guerra, ainda persistem resquícios do
colaboracionismo da Igreja com as armas, ao insistir no instituto das
capelanias militares e, mais ostensivamente, na consagração de um bispo
castrense, como se de uma diocese autónoma se tratasse, equivalente ao ‘reino’
do Opus Dei. Mais impressiva, aqui na Madeira, é a peregrina devoção
mensal, liderada por um coronel-padre
(que mistura explosiva!) de arregimentar as vítimas e, ao mesmo tempo, agressores na
antiga guerra e misturá-los com bênçãos e espectáculos pios. Deveríamos
envergonhar-nos em vez de nos
pavonearmos com o -que lá fizemos. .
Segundo,
repudiarmos a sacralização da guerra da Rússia contra a Ucrânia, através da
acção sacrílega do arcebispo-patriarca moscovita, Kirilos.
Terceiro,
penitenciar-me por ter sido cúmplice da guerra colonial, ao ser enviado para
Cabo Delgado, Moçambique, como capelão militar,
um “capelão-à-força”. Nessa hora, o que
deveria ter feito era a imediata deserção ou a recusa sem apelo nem retorno.
Daí, o meu pedido de perdão aos portugueses e aos africanos! .
23-24.Mai.23
Martins
Júnior
Sem comentários:
Enviar um comentário