quarta-feira, 24 de maio de 2023

GUERRA E ANTI-GUERRA, HERÓIS E ANTI-HERÓIS EM PORTUGAL - UMA REPORTAGEM DE ANTÓNIO MARUJO

                                                                        


        Se “de boas intenções está o inferno cheio”, de malditas guerras está a terra prenhe. Os armamentistas enriquecem, os pobres mirram de fome, do pão que o diabo amassou nas forjas dos fabricantes, os poderosos vomitam ódio pelas narinas fossilizadas e os media agradecem, não lhes falta ementa para entreter o vulgo.

E não se esqueça a religião pacóvia que, sem pejo nem pudor, chama Deus e Nossa Senhora ao campo da metralha, levando os crentes a fazer de cada conta do rosário outras tantas granadas de mão contra os “inimigos” que são também filhos do mesmo Deus e da mesma Mãe.

É disto que me ocupo hoje, desta insuportável, explosiva, repugnante  massa híbrida: fé e armas. Para quem segue a genealogia das religiões, nada de novo, a começar pelo nosso Portugal missionário e colonizador, com as duas faces na mesma bandeira: a Fé e o Império! Está no ADN das religiões oficiais, desde 313, a malfadada aliança entre o Imperador Constantino e a Igreja Católica, o mesmo monstro bicéfalo, umas vezes a cabeça do Império, outras a da (má)-Fé, ora em disputa pelo maior quinhão de poder, ora em conúbio incestuoso na mesma cama de interesses comunicantes. Basta rebobinar o filme e lá estão em pódios gémeos, a religião e o poder, a cruz romana e a cruz suástica, Pio XII e Hitler, mutatis mutandis.

  Mas hoje quero remeter os meus companheiros da estrada bloguer para uma reportagem do distinto  jornalista António Marujo, editor do programa “Sete Margens”. Vem numa recente “Revista” do semanário Expresso e tem por conteúdo o problema da nomeação e desempenho dos capelães militares na guerra colonial portuguesa, entre 1961 e 1974,

António Marujo coloca como protagonista o Padre Arsénio Puim, açoriano de origem e capelão militar – “capelão-à-força”, posso dizer – e mais tarde expulso do Exército, devido às posições tomadas, quer entre os combatentes do seu batalhão, quer pelo apoio social dado à população indígena da Guiné-Bissau. Foi o segundo capelão expulso – o primeiro foi o Padre Mário de Oliveira, de Macieira da Lixa – a que se seguiram outros casos de recusa e até de deserção dos próprios padres mobilizados para  assistência militar  em campo de guerra ultramarina. A consciência dos valores cristãos em litígio com os objectivos táticos e estratégicos das operações bélicas em causa foram o móbil das decisões assumidas pelo capelão Arsénio Puim e seus colegas contestatários. De entre muitas citações, aduzo a seguinte, retirada do seu ‘diário’:

          Celebrei hoje a missa a uma larga frequência de soldados. O Evangelho fala de amor ao inimigo, da misericórdia para com os outros. Mas que poderia eu dizer de amor e perdão a estes rapazes, horas  antes da sua partida para uma operação de destruição e morte, contra a verdade e a razão? Não vão defender nada, vão matar para calar, pondo também em risco a própria vida. Uma chusma de matadores inconscientes.

Sobre o papel da Igreja nesta conjuntura, declarou frontalmente:

Eu não escolhi vir para capelão militar. Fui mandado (sem qualquer palavra de consulta ou informação do meu prelado) para uma acomodação da Igreja e distorção do Evangelho e do sacerdócio, vestindo uma farda antievangélica.

Recusou-se a usar a G3, a arma distribuída aos militares combatentes. E a propósito de rezar o terço pelos ‘turras’ (nome dado aos africanos em guerra) a pedir a sua conversão, Arsénio Puim sublinhava:

O que será isto? Conversão a quê? Ao evangelho português segundo Salazar?...

Agradeço a reportagem de António Marujo, li-a com muita emoção, porque identifico-me com os colegas contestatários da guerra colonial, passei idênticos confrontos com a minha  consciência e com as estruturas político-eclesiásticas do Exército. Trago ao meu blogue a informação de António Marujo, por três motivos:

Primeiro, por ver que, mesmo após a guerra, ainda persistem resquícios do colaboracionismo da Igreja com as armas, ao insistir no instituto das capelanias militares e, mais ostensivamente, na consagração de um bispo castrense, como se de uma diocese autónoma se tratasse, equivalente ao ‘reino’ do Opus Dei. Mais impressiva, aqui na Madeira, é a peregrina devoção mensal, liderada  por um coronel-padre (que mistura explosiva!)  de arregimentar  as vítimas e, ao mesmo tempo, agressores na antiga guerra e misturá-los com bênçãos e espectáculos pios. Deveríamos envergonhar-nos em vez  de nos pavonearmos com o -que lá fizemos. .

Segundo, repudiarmos a sacralização da guerra da Rússia contra a Ucrânia, através da acção sacrílega do arcebispo-patriarca moscovita, Kirilos.

Terceiro, penitenciar-me por ter sido cúmplice da guerra colonial, ao ser enviado para Cabo  Delgado, Moçambique, como capelão militar, um “capelão-à-força”.  Nessa hora, o que deveria ter feito era a imediata deserção ou a recusa sem apelo nem retorno. Daí, o meu pedido de perdão aos portugueses e aos africanos!    .

 

23-24.Mai.23

Martins Júnior

 

                      

 

 

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