A
invasão tribal que a PSP fez hà trinta anos na igreja da Ribeira Seca, Machico,
por ordem do bispo Teodoro Faria e do governo regional, merece uma análise mais
aprofundada nos seus pressupostos e conclusões. É um daqueles acontecimentos
que ficarão catalogados no clássico ficheiro de “ study case”. Quem
interpreta a ilegal e vergonhosa loucura
dos mandantes regionais apenas como uma vingança cirúrgica contra um homem ou
contra um pequeno agregado rural engana-se redondamente. E corre o risco de não
ver outra narrativa senão os carros policiais, os agentes invasores cacetando
as pessoas, depois as reacções, os gritos, homens e mulheres jogados como rezes
para dentro dos carros da polícia, prisões e tudo o mais. Vistas, porém, essas degradantes cenas locais com um
olhar mais apurado, o do historiador, chegará à conclusão de que elas mais não
são do que uma nova edição do eterno conflito social entre duas soberanias: a
do poder e a do povo.
É
esta a questão de fundo e não os seus contornos mais visíveis.. Porque desde sempre os ditadores traçaram um
maquiavélico plano binário: primeiro tempo, juntar-se ao povo; segundo tempo,
neutralizar o povo. Cito, por todos, o sargento Hitler. Poderíamos adicionar os
mini-aprendizes hitlerianos cá do sítio, brevemente em aparente extinção.
Endossar gratuitamente a soberania popular a terceiros é o caminho aberto à
manipulação e, por fim, à capitulação de toda a autoridade do povo. Passa-se na
política, nos negócios, na banca. Faz parte da construção sistémica das
ditaduras. O povo perde a voz, a personalidade crítica, enfim, a própria
dignidade existencial.
Não
só no âmbito da política. Também e sobretudo na religião. Aqui, agrava-se o
risco, porque no estádio de uma religião obscurantista, os crentes são
atacados, desarmados, rearmados no que de mais íntimo possui: o pensamento e a
sensibilidade. Os jihadistas matam por amor a Alá e ao seu Profeta. Os cristãos
de outros tempos também foram vítimas de idêntica escravatura. Volto a citar o cardeal Poluzzo
Polluzzi, chefe da execranda “Santa Aliança”, no século XVII: “ Se o Papa ordena liquidar alguém na defesa
da fé, faz-se isso sem fazer perguntas.
Ele é a voz de Deus e nós, a “Santa Aliança”,
somos a mão executora”.
O
que se está a comemorar na Ribeira Seca
é isso mesmo: o fanatismo do Estado Cristão Diocesano atirando as tropas dos “jihadistas” políticos contra um povo cristão indefeso. Configura o regresso à
barbárie pseudo-religiosa, reeditada no século XVII pela Inquisição.
Mas o povo resistiu. E
ganhou a guerra com as “armas da luz” e da paz. É esta e só esta a grande lição
do pequeno capítulo da história de um povo.
Aqui, foi derrotada a soberania
delegada do poder político-religioso e venceu a soberania originária do
Povo. É este o Artº 1º da Constituição
de todas as Repúblicas Democráticas. E
não é por acaso que o Papa Francisco tem lutado repetidamente contra o
centralismo devocionista e defendido o respeito pelas periferias.
A periférica Ribeira Seca mais não fez do que
exercer o seu direito constitucional. Porque o Povo não pode ser um farrapo
agitado a bel-prazer dos soberanos e não
será nunca um catavento ao capricho de atrevidas mãos dominadoras. Parafraseando
um inspirado poema de Ary dos Santos, direi: “Aqui, na Ribeira Seca, a ditadura não pôs a pata em cima”! Nem mesmo
a política despudoradamente travestida de religião. Nem a religião fardada de
polícia.
Por isso, toda
a Ribeira Seca cantou e ainda canta no seu templo renovado “A Igreja é do Povo
e o Povo é Deus”, acrescentando-lhe na hora: ”Que faz a polícia na Casa de
Deus?”
“Ninguém
pode destruir
A força desta união
Nós ganhámos esta luta
Que o Povo tinha Razão”
N.B. Ao citar o termo “polícias” no texto,
não envolvemos os agentes policiais, mas tão-só aos comandantes e graduados
subalternos.
3.Mar.2015
Martins Júnior
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