Devem ter notado já os
meus interlocutores que não me apraz debruçar sobre a casuística caseira e
rasteira, protagonizada pelos olheiros e (mal)
feitores cá da horta política ilhoa. Para esse peditório já dei. E muito.
Prefiro agora abarcar as sínteses, o planisfério global em que se movimentam e
armadilham as ideias, os artistas prestidigitadores e as marionetes deste palco
breve que é a vida.
Mas
abro excepção neste fim de tarde, porque não é todos os dias nem todos os anos
--- aliás, nunca se viu nos últimos
supra-salazarentos 37 anos --- assistir “ao vivo” a um espectáculo tão
comovente: o inamovível inquilino da Quinta das Angústias andar, de corrico em
corrico, batendo à porta dos seus comparsas, afilhados e padrinhos, no beija-mão
da despedida. Ternurento e trágico: agora todas as portas se abrem, não para
entrar mas para sair.
Hoje
foi a vez do Prelado Madeirense. Esta cena merecia bem a pena mefistofélica de
um Eça ou a paleta pontiaguda de um “Charlie Hebdo”. Aqueles suspiros de amados e amantes, aqueles
olhos multifacetados confundindo o soalho com o tecto, gestos embrulhados em
toucinho desde o pescoço até à cinta… Que terão dito aqueles corpos, que de
juras de saudade eterna, que de prantos incontidos naquele palácio, que até os
passos fugitivos não deixaram fazer declarações extra-muros?! “Graças vos dou,
Senhor Bispo, pelas sacro-profanas
cerimónias em que fostes o mestre e patrono”, foi sem dúvida o lamento que
ficou lá dentro, acordes lentos de um funeral anunciado.
Mas
o caso é muito mais sério. O gesto de gratidão não se dirigiu apenas ao actual
inquilino do Paço, mas ao todo que aquela casa representou de cumplicidade,
ambiguidade, roçando mesmo a criminalidade, na troca de inconciliáveis
enriquecimentos. Desde a oferta dos altares aos pés do trono político-partidário, em que as igrejas da
Madeira tiveram de ajoelhar-se perante um herdeiro do fascismo português. Desde
o abandono da cerimónia dos Crismas para juntar-se ao governo na inauguração de
um hotel. Desde o envio da polícia armada para ocupar uma modesta igreja rural
e, na mesma altura, ter comparado um pederasta brasileiro a Jesus Cristo
pregado na cruz. Desde o pedido ao presidente regional para instaurar processo
judicial (que veio a perder) contra um padre anti-regime. Desde a traição de Judas na entrega do Jornal da
Diocese ao partido e ao governo regional. E o muito mais que um dia será descoberto e
contado.
As
mãos que mutuamente se apertaram à despedida não estão limpas. Há nelas muito
da peçonha que aliou Herodes e Anás. Pilatos e Caifás. Nunca seria tão audível e maléfico o grito de
um se não fosse o silêncio cobarde do outro!
O pontífice da cruz dourada e cinta vermelha
já não será mais o primeiro a chegar à mesa de honra e esperar pelo presidente
para indicar-lhe o lugar central, como se revelou eloquente e reverentemente no
primeiro acto oficial conjunto, a sessão do Dia do Concelho em Porto Santo, 24
de Junho de 2007.
Nenhum
deles se lembrou do esforço gigante que, no futuro, terão de fazer os titulares
do Paço Episcopal e da Quinta Vigia para apagar o rasto viscoso e cúmplice que
deixaram. Tal como o Papa Francisco para libertar-se dos “lobos” sem escrúpulo
da Cúria vaticana.
11.Mar.2015
Martins Júnior
Muito bem escrito!! Delicioso e acutilante...Do melhor que tenho lido! Parabéns pelo talento! Cumprimentos.
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