domingo, 1 de março de 2015

O PRIMEIRO DOS DOMINGOS DE MARÇO DE 1985


           Cada um de nós é uma ilha diferente de qualquer outra. Porque diversas são a fauna e a flora, o clima e as constelações, os picos altos e as profundezas que povoam  a ilha que mora dentro de cada um de nós: são as memórias e as emoções que nos cercaram no largo arquipélago que nos coube viver. E é precisamente essa nebulosa, umas vezes clara, outras vezes pardacenta, que nos torna todos iguais e todos diferentes.

Peço desculpa, mas não me deixa  sossego nem  posso ficar  insensível perante o relembrado cenário vivido e dorido de há três  décadas na Ribeira Seca, aquando da ocupação da igreja, adro e residência pela PSP às ordens da diocese e do governo regional.
Percorrendo a página de facebook da Ribeira Seca (https://www.facebook.com/ribeirasecaterradeliberdade, ficamos a saber que um contingente de 70 policiais, dia e noites de plantão, impediam a entrada do povo na sua igreja, uma construção feita  exclusivamente pela mão do povo, sem qualquer subsídio do governo ou da diocese.
Era aos domingos que mais se notava o deserto daquilo que tinha sido sempre o cenáculo das celebrações e o “fórum” dos nossos convívios semanais.
“Exilado” na casa dos meus pais, vieram dizer-me que o povo queria a sua missa dominical. Na igreja era impossível. Como fazer então?... Vamos para os poios e montados em que é rica a nossa paisagem rural.
Aqui faço um intervalo para abrir o álbum das recordações eucarísticas que vivi ao longo da vida. Faço-o para vos transmitir a emoção que povoa esta ilha que sou. Que cada um é.
Antes de 1985, tinha eu já celebrado nos ambientes mais desencontrados e inimagináveis: para a marinhagem de um navio-escola francês atracado na velha “Pontinha” do Funchal;  no alto do Pico Castelo, Porto Santo. Celebrei para oficiais, sargentos e praças, entre mar e céu ( o mar era o chão e o céu a cúpula do templo) ao dobrar o (ali, com todo o aperto semântico) Cabo das Tormentas, quando o “fatídico”  navio Niassa nos transportava para a guerra colonial em Moçambique;. E aqui, quantas vezes celebrei, lembro-me especialmente  de uma bem marcada noite de Natal, sim, celebrei numa companhia do mato,  Nambude, o altar era uma tábua entre dois bidões, à luz mortiça de um candeeiro artesanal, não viessem os injustiçadamente chamados “turras” atacar-nos à morteirada. Cheguei ainda a celebrar trinta e dois baptizados de africanos macondes em Palma, junto ao rio Rovuma de onde se avistava o território da Tanzânia, mesmo defronte.
Mas para que fiz eu esta tão longa  tão longínqua viagem?... Só para ter convosco este desabafo: em nenhum desses locais me senti tão padre, pastor e irmão, como quando em 1985 percorria os montados da Ribeira Seca nos domingos da ocupação. Enquanto os polícias cercavam uma igreja fechada, o nosso templo, andávamos nós pelos campos fazendo a nossa oração dominical e reflectindo sobre o momento que então se vivia. Em todos os outros locais por onde andei, sempre havia um altar. Aqui, em terra nossa, não. Porque temia-se que a toda a hora viesse a polícia perseguir-nos.
O que então se dizia e meditava poderá ficar para outro dia.. Pelo menos, até 18 de Março. Por hoje, apenas e só um pensamento: tudo isto se passou no Portugal de Abril, na Madeira, em Machico, Se não houvesse testemunhas, ninguém acreditaria.

1.Março/2015
Martins Júnior

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