Foi uma daquelas alegrias plenas, desejada e perseguida ao longo de 38 anos na Cinemateca Nacional, mas sempre inalcançada. E eis que me cai nas mãos, incha as órbitas, inunda e pacifica a minha sede de descoberta. Falo do documentário alargado --- “COLONIA E VILÕES” --- rodado na Madeira nos anos 76-77 do século passado, no verão febril e no outono aceso do pós-25 de Abril. Devo, aliás todos devemos, esta dádiva ao talentoso artista dramático, o madeirense Élvio Camacho e à distinta professora Isabel Cardoso, que veicularam, através do face, para milhares de “espectadores” de dentro e fora da Madeira, um preciosíssimo testemunho histórico de uma época em que neste arquipélago, “cantinho do céu”, os incendiários e bombistas do movimento independentista “Flama” gozavam do estranho proteccionismo de salazaristas encapuzados, prontos a tomar o poder e destruir à nascença a libertação oferecida ao Povo pela Revolução dos Cravos. Juntou-se, nesta insaciável fagia, devoradora sem escrúpulos ---- calculem--- a hierarquia católica diocesana, personificada na figura de um bispo lisboeta, colocado no Funchal em vésperas da vitória da democracia.
O filme tem por protagonistas os caseiros, depreciativamente catalogados de “vilões”, vítimas até então do leonino contrato da colonia, cuja vida bem se podia comparar aos servos da gleba de outras eras. São eles que fazem os depoimentos, páginas vivas do seu dia-a-dia, dobrados sobre as terras de um senhorio que as chamou suas desde tempos imemoriais, não só em Machico, mas na Ponta Delgada, São Vicente, Faial, Ponta do Sol, São Martinho e muitas outras freguesias rurais. Usos e costumes ancestrais, passos de dança campestre, festas religiosas tradicionais, misturadas aos dramas e dores que os camponeses curtiam, “gemendo e chorando” nos alcantilados do vale de Machico.
Co-protagonista é também, por impressivo contraste, o prelado Francisco Santana, o tal a quem o PSD/M deve toda a paternidade, a partir do momento em que, como já mostrei noutro lugar, faz a mais profana entrega da direcção do Jornal da diocese àquele que colocaria, depois, no pódio da governação regional para quase 40 anos de repressão. O papel deprimente do bispo no ataque aos cultores da democracia vem sobejamente demonstrado no abuso tremendo que, de mitra e báculo empunhado, contra eles bradava desde o altar as mais horrendas calúnias. À minha pessoa, coube a macieza do epíteto de “Judas que tendes entre vós” e, ainda, de autor do “catecismo do ódio”, em referência às lições extraídas da Bíblia sobre Moisés, Isaías, Amós, Jesus Cristo, como libertadores do Povo do seu tempo, lições essas policopiadas a “stencil” e encadernadas com uma fitinha artesanal sob o título “Deus no meio do seu Povo”.
O valioso documentário abalou os poderes regionais. Não se sabe como, desapareceu por completo. Quantos anos subi e desci a “Barata Salgueiro”, em Lisboa, a ver se lobrigava alguma luz sobre a ilegível película, da qual, segundo me informavam na Cinemateca Nacional, só possuíam o “negativo”. Tudo em vão. Por aqui calculam os meus amigos a intraduzível explosão de alegria quando revejo os nomes do realizador Leonel de Brito e do chefe de fotografia Elso Roque. Conheci-o, o Elso, em 1964-65, no Porto Santo, como assistente de imagem do famoso Jean Rabier, aquando da rodagem da longa metragem “Ilhas Encantadas”, uma produção luso-francesa dirigida por Calos Villardebó, com a participação de Amália Rodrigues e Pierre Clémenti. Belos tempos!
Voltando ao tema, aconselho e recomendo o visionamento da película (ela está no Facebook da Ribeira Seca) dado que estamos perante um dicionário vivo de uma época em que os ofendidos e humilhados pelo poder esmagador não tinham a mínima hipótese de defender-se na comunicação social madeirense. E se uma gravura vale mais que mil palavras, este “COLONIA E VILÕES; vale como uma biblioteca.
15,Set.2015
Martins Júnior
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