Temos todo o tempo do mundo para conversarmos
sobre temas vários que, nesta altura, caem em catadupa no terreiro do nosso
quotidiano. Por isso, hoje optei por continuar dentro do pavilhão ou sob o
guarda-chuva da Senhora, pois que ainda palpitam um pouco por toda a Madeira as
festas dedicadas à mesma Senhora, embora se apresente com outra maquilhagem ---
Senhora da Piedade, Senhora do Rosário, Senhora do Livramento, o 13 de Outubro
em Fátima…. E faço-o, motivado que fiquei com a troca de ideias de outros
amigos que encontrei ontem e que hoje volto a cumprimentar.
Queria eu ter a pena ágil de um Eça de
Queirós ou o talento de Dante Allighieri, na sua “Divina Comédia”, para trazer
ao pequeno ecrã uma narrativa com que sonho há muito tempo e costumo redizê-la
aos meus companheiros de viagem que são as gentes da Ribeira Seca.
E
lá vai ela, a narrativa:
Era
uma vez…uma devotíssima senhora, toda ela cheirando ao véu das múltiplas e
venerandas Senhoras. Ela adorava as novenas de Maio, as trezenas do Monte, as
quarentenas do Parto, as “velas que dão luz e vão morrendo”, os eflúvios inebriantes
dos incensos que turibulavam nas naves dos templos, sei lá, percorria todas as
imagens e a todas tudo prometia: os colares de ouro que uma tia-avó, solteira
rica e “Filha de Maria” lhe oferecia em dia de anos, alcatifas azuis para a
imagem passar, diademas e coroas de ouro fino sobre a cabeça da Rainha dos céus
e da terra. Guardava ciosamente no seu aparador um menu interminável de
Senhoras.
Ora, um dia a Senhora morreu. Em
chegando lá cima, São Pedro fez um ângulo dorsal de 90º e instalou-a nos átrios
eternos. Mas a nossa “Beatrizinha” --- era assim o seu diminutivo de carinho
--- começou a ter saudades das Senhoras que tanto tinha cortejado em vida.
Desce do seu cadeiral e. sem mais pergaminhos, interpela o Guardião Celestial:
---
Oh, meu rico São Pedro, faça-me esta graça.
---
Filha dilecta do Senhor, tu mereces tudo. Fala.
--- Sabe, tenho saudades tantas da Senhora do
Guadalupe. Será que podia vê-la pessoalmente e agradecer-lhe uma tão grande
graça que me fez lá em baixo.
---
É já, meu anjo. Fixa bem: tu vais por esta corredora, viras à esquerda, dás
outra guinada à direita, entras noutra maravilhosa corredora, deparas-te com um
largo em redondel e…pronto, lá verás a tua Senhora do Guadalupe.
E
a octogenária Beatrizinha avança,
pressurosa e arfante. E alcança o seu desejo. Mas, diante da Senhora Imagem,
lembra-se de outra Senhora, a do Livramento, que lhe livrou da tropa um sobrinho e a outro salvou-o das maldita minas lá das áfricas.
Volta ao S.Pedro e reformula o pedido:
---
Vai perdoar-me, Santo Porteiro, mas eu também queria ver a Senhora do
Livramento.
---
Não tem que pedir, vai já. Repara bem:
entras nesse corredor, viras à esquerda, mais uma guinada à direita, uma
corredora e logo à frente um redondo e um altar. É lá mesmo.
E
a nossa devotíssima anciã corre, corre. E lá está. Foi tal o ardor que se
desfez em lágrimas de compunção, sem sequer olhar para a imagem. Mas… lá vem
outro desejo. Volta a São Pedro:
---
Esqueci-me, Divino Pescador, que também a Senhora da Agonia deu-me força de
chamar o sr. vigário para dar a Extrema-Unção à minha rica tia. Até pus ao
pescoço da Senhora o melhor cordão que ela me dera no dia do Crisma.
---
Não tem problema. Vais por essa corredora avante, depois à direita, a seguir à
esquerda, outra corredora, um palco em círculo. Não tens que errar. Já
chegaste.
Ainda
mal refeita da emoção anterior, limpa as furtivas lágrimas da face, segue o
esquema --- hoje, diríamos o GPS da fé --- e faz a sua oração. Mas, apurando a
vista, nota que o colar de ouro estava ausente da Senhora. Tê-lo-á imaginado no
cofre forte à guarda do Tesouro Celestial e, de regresso, mais um remorso: lembra-se
da Senhora dos Aflitos. Corou de medo, mas a coragem foi maior e avança para a
sagrada Sentinela:
---
Agora é que é a última vez que venho a seus pés, Guardador das Chaves Santas.
Falta-me uma prece e um muito-obrigada à
Senhora … e lá compôs entre dentes… Dos Aflitos.
O
Santo Ancião, com a paciência de um mártir, cofiou as barbas longas tisnadas do
sal do mar da Galileia, curvou-se reverentemente e não teve outro trabalho
senão repetir a mesma receita, que ela, a ancestral e devotíssima romeira cumpriu escrupulosamente,
até chegar à desejada meta. Desta vez, fixou melhor o rosto da Senhora, sentiu
uma espécie de cardos da dúvida a percorrer-lhe a consciência, mas depressa as
afastou com o mesmo à-vontade com que se afastam mosquitos. E voltou a rezar, a
rezar, a agradecer. O pior é que começaram a persegui-la as memórias de outras
Senhoras que constavam do seu cardápio terreno e com tal veemência como se umas tivessem ciúmes das outras, reclamando
cada qual a sua prioridade.
A
nossa fidelíssima octogenária não achou lenitivo para esta angústia senão voltar
à fonte e, diante de São Pedro, em turbilhão as intermináveis identificações e
passaportes marianos que trazia no subconsciente, particularmente Nossa Senhora
do Calhau, do Funchal, e Nossa Senhora dos Remédios, de Lamego.
Que
remédio! --- exclamou o Santo Guardião, sem poder conter o mais que justificado
constrangimento. E rememorou-lhe o mesmo “código de estrada” em direcção à
Senhora. Aí, a nossa beatíssima Beatrizinha perdeu um pouco da habitual
compostura e atreveu-se:
---
Oh, santíssimo Proto-Papa, está a enganar-me. Pelo que me diz vou bater à mesma
corredora, à mesma esquerda-direita, outra vez à mesma segunda corredora, ao
mesmo redondel.
---
E à mesma Senhora --- rematou o paciente Cicerone.
---
Mas como pode ser isto? ---- enervou-se a nossa devota. Desculpe, mas o senhor
está a matar a minha fé nas minhas sete, ou setenta vezes sete, Senhoras-
---
Minha filha, acalma-te, relaxa. Tem paciência e volta ao mesmo lugar e Ela, a
única e verdadeira Senhora esclarecer-te-á, perdoará e salvará eternamente.
Não
há palavras, nem exclamações nem interjeições que permitam ao narrador contar o
que exactamente se passou depois. É que a nossa sereníssima pagadora de
promessas entrou e fechou decididamente a porta. Entretanto, pelo buraco da
fechadura, o narrador conseguiu captar o momento:
---
Senhora Mãe de Jesus, afinal quem és tu? Onde é que estão as outras sete ou
setenta vezes sete Senhoras? Onde estão as minhas velas sem conta, os meus
colares de ouro que lhes ofereci, os passos que eu dei, as peregrinações que me
retalharam os pés, correndo de um Santuário para outro? Não posso, não aguento
mais!
Eis
o clímax de todo este drama: a Senhora desce os degraus do altar, ajuda a
levantar a anciã debulhada em pranto e soluços, abraça-a, com aquele encanto
que só uma mãe sabe consolar um filho. E diz-lhe:
---
Sou Eu Aquela que procuras.
---
E as outras onde é que as escondeste?
---
Minha filha, não há outras. Só há uma. Aquela com quem falas.
---
Mas lá em baixo havia tantas, tantas, que amei e a quem tudo dei.
---
Lá em baixo, enganaram-te. Esse foi o mundo do engano. Agora estás no mundo da
Verdade. Enganaram-te, vestindo-me de tantas figurinos, de tantas alcunhas, de
tanto ouro, de tantas ceras, que não havia necessidade. Aqui me tens: a Única,
a Mãe do meu e do teu Jesus.
Com
um beijo selaram a grande descoberta. Recuperada da abissal desilusão, Beatrizinha tornou-se Beatriz, adulta, esclarecida,
vigorosa. E apertou Maria, a Grande Mulher e Senhora, com este brado:
---
Manda alguém lá baixo, te imploro. Um mensageiro, anjo ou arcanjo, avisar os
pobres mortais, dizer-lhes que não mais se iludam, não mais te ofendam.
---
Eles têm as Escrituras, eles têm a Razão, eles têm o Amor que lhes desvendarão
o esplendor da Verdade e saberão que a Senhora é só uma: MARIA E MAIS NENHUMA!
………………
Ninguém
veio.
Mas o narrador “viu”. E aqui dá o seu testemunho para quem quiser
reflectir, para quem quiser contestar, para quem quiser --- concordando ou
discordando --- ajudar a fazer luz neste
mundo obscuro, tolhido pelo medo de encontrar a Verdade.
E
agora sou eu que concluo: muito embuste, muita patranha, muito lucro vil se
enxameia a crença, a coberto de devocionismos fraudulentos ou, pelo menos, desviantes.
E termino, sentindo bater aos meus ouvidos aquela belíssima e dolorosa canção,
sucessivamente interpretada por Joan
Baez e Dalida:
Ils ont changé ma chanson,
ma!
Nem
duvido: eles, os tecnocratas da religião, os manipuladores da fé mudaram o
Poema da Mãe, corromperam a mentalidade e a sensibilidade do Povo crente!
19.Set.2015
Martins Júnior
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