Na
mesa redonda do SENSO&CONSENSO não há lugares marcados nem inscrições
protocolares. E aí, no aconchego do ecrã, a ementa surge ao ritmo da vida, detectando
no particular e no imprevisto a leitura do universal que permanece. Por isso,
deixei para outro repasto o prometido “III
Acto” e enchi os pulmões do perfume telúrico da floresta amazónica, desbravei
da memória as ondas de Copacabana, ao som do samba saltitante da Baía.
Porquê?
Porque
hoje é o 7 de Setembro, Dia da Independência do Brasil. E, daí, dei comigo em
Olinda e Recife, comemorando uma outra Independência do Povo Brasileiro.
Foi
em 1972, durante uma viagem em que, como é meu indomável instinto, guiei-me
pela agulha magnética de Fernando
Pessoa, quando afirma: “Vi como um danado”.
Posso afiançar-me que foi neste íman que se concentrou a infinidade de lugares
e quilómetros percorridos, interessando-me, muito impressivamente, a situação
da América Latina, onde, segundo ouvira
falar, estava ao rubro a Teologia da Libertação. Foi assim que, depois da
audiência com o afável e tangível arcebispo de S. Paulo, o cardeal Evaristo Arns; depois do militante activista bispo Duarte
Calheiros que, em sua humilde casa em Volta Redonda, me apontou as coberturas
de zinco das fábricas espalhadas à nossa frente e satisfez a minha curiosidade
quando me ia informando: “Olha, padre português,
aquelas são as catedrais da minha diocese” --- depois, ainda, de atravessar os
enormes celeiros verdes produtivos entre S. Paulo e Brasília, onde contactei um
homem, na aparência, serrano, o grande bispo Tomás Balduíno, andando no terreiro de uma habitação
sertaneja , era a residência episcopal --- depois de tudo isto, alcancei a meta
do meu sonho brasileiro: encontrar-me pessoalmente com o famoso pela luta,
eloquente pela mensagem, corajoso como o vento do nordeste, o bispo Hélder da Câmara. Além da
beleza indescritível de toda a fímbria costeira que une as duas cidades, calhou-me
nas mãos a coincidência ideal: era o 7 de Setembro e na quinta do Paço
Episcopal ia comemorar-se a Independência do Brasil. A meio da tarde, pedi audiência ao homem que todo o
dia recebia entidades de todo o mundo (
estavam saindo nesse momento, três jornalistas americanos) e o veterano bispo falou-me
do Brasil, da Igreja, do governo da ditadura então vigente, sei lá, num
instante abriu-me o planisfério da América Latina, “vítima das ambições capitalistas
do Pentágono”. Convidou-me, no fim, para
as comemorações da noite, nesse mesmo local.
Fica-me
pena não ter suficiente espaço na paciência de quem me lê, para poder descrever
a beleza única, a inspiração genuína, enfim, o fogo patriótico que emanava
daquele chão. Tentarei sintetizar.
Para
começar, devo esclarecer que o Paço Episcopal era um daqueles monumentos
senhoriais, talhados à medida dos imponentes palácios da era dos latifundiários
coronéis e governadores, Mas Hélder da
Câmara ( a quem, horas antes, o vendedor
da banca de jornais mo tinha catalogado de “bispo comunista”) não era inquilino
do palácio: entregara todas as dependências e os vastos territórios anexos para
fins sociais e culturais, onde estavam instaladas as sedes de movimentos de
jovens, idosos, assistência social na doença e na pobreza, enfim, doara o
palácio diocesano e foi viver para uma casa rasteira (eu, comovidamente, bem a vi) junto a uma estrada secundária da zona.
Mas
vamos ao Dia da Independência. Um ambiente de apoteose esfusiante como só os brasileiros
sabem fazer. Protagonistas: a multidão em massa apinhada na base dos degraus
típicos dos solares coloniais e, no largo patim superior, o palco improvisado,
envolvido pelo ondear de uma enorme bandeira, “meu coração é verde e amarelo-branco-azul
do mar”. Artistas: grupos de todas a idades, representando os diversos bairros
e núcleos daquele território, cada qual na sua vez, um colorido de vozes e
trajes de encantar. Foram quatro horas inesquecíveis que, sendo longas,
pareceram-me tão breves! Brancos, negros, mestiços traziam no canto e na coreografia
original, a exaltação do seu país, as emoções, o orgulho do seu Brasil, à
mistura com muitas mágoas, muitos dramas, mas tudo num ritmo fascinante e numa linguagem
metafórica --- não aparecesse por ali algum espião da ditadura.
Um
pormenor que não resisto a partilhar convosco: estou a ver o bispo Hélder
sentado numa cadeira, junto ao palco e, num ápice, vejo-o descer, ágil no seu
corpo franzino, dirige-se a um homem alto, esguio, ali de pé, tez morena do sol nordestino sob um chapéu de abas
largas. Era um velhote, entrado seguramente na casa dos 80 anos. Pois o “ nosso”
bispo pega-lhe pela mão, fá-lo subir os
degraus e senta-o na sua própria cadeira especial. E ficou de pé, junto do
veterano, todo o tempo que durou o espectáculo. Que ternura, que simplicidade,
que transparente suavidade de espírito para quem presenciou!
Vou
encurtar este longo relato. Mas deixo para o fim, a cereja em cima do bolo
daquela noite. Aconteceu quando Hélder da Câmara encerra a festa da
Independência. E aquele que parecia um insignificante emaranhado de ossos, não
de média mas de baixa estatura, ocupa o meio da cena e, como num misterioso
relâmpago, todo ele se ilumina, a voz transcende-o,
o pequeno corpo frágil parece alcandorar-se acima da terra e entra,
humilde e avassalador, na mente e no coração de todos quantos ali estávamos. Sem medo, alto e
bom som, levanta o ânimo das gentes e afronta o poder da ditadura, num misto de
defesa de ideais e ataque aos detractores da sua luta, os poderosos do reino
brasileiro. E fala assim:
“Dizem eles que eu ou que nós não
queremos o progresso do Brasil. Não é verdade. Queremo-lo e muito mais do que eles.
Só com esta tremenda diferença: É que nós
queremos o progresso do Brasil, sim, mas com os brasileiros, pelos brasileiros
e para os brasileiros”.
Em
ponto final: que estilo tão autêntico de comemorar o Dia da Nação! O Dia da
Região! Tão longe e tão diverso daqueles ambientes de rígido protocolo,
insípidos, molengos, fastidiosos e, por isso, tão alheios aos verdadeiros soberanos
do país: o Povo! Aqui apetece citar a tirada de Eça de Queiroz na famosa carta a
Pinheiro Chagas, onde verbera, forte e sarcástico, os falsos patriotas, quando
os define como “patriotaças, patriotarreiros,
patriotarrecas”.
Onde
quer que esteja o pó desfeito do bispo de Olinda e Recife, aqui deixo ao seu
espírito perene a gratidão de quatro décadas ao sempre imortal libertador do
Povo, o magno Hélder da Câmara, precursor de Francisco Papa e caminho aberto
para bispos infantis, padres inconscientes, cristãos dorminhocos, todos os que,
afivelando patriotismo nas palavras, não passam de malfeitores “patriotaças, patriotarreiros, patriotarrecas”.
7.Set.2015
Martins Júnior
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