Hoje
fico em casa, não pelo frio e pela chuva que enchem o vale, mas bem ao contrário,
pelo calor anímico com que Outubro continua a
envolver as gentes de Machico. Refiro-me às iniciativas
histórico-culturais que neste pico do outono vestiram a paisagem física e
humana desta cidade, com destaque para a
“as artes dos deuses e dos homens” --- a música e o teatro. Todos os fins de
semana têm-nos brindado com produções de representação regional, nacional e
internacional, sempre com casa cheia.
Anteontem,
o palco do Forum ofereceu-nos uma síntese da heteronímia de Fernando Pessoa, a
partir da “Ode Triunfal”, intensamente
vivida pelo grupo AMOTEATRO e de tal forma que, não obstante a concêntrica densidade
pessoana, manteve o auditório numa consonância premente, total, com os três intérpretes em cena. (Entre
parêntesis, foi pena ter coincidido com o mesmo horário do concerto de órgão na
igreja matriz).
Ontem,
o encerramento da programação do Dia do Concelho saldou-se num memorável
concerto, em que a simbiose do canto e dos metais “abalou” de emoção todos quantos ali se
encontraram. Falo do duplo álbum que se
abriu diante dos nossos olhos: o Grupo Coral de Machico e a Banda Municipal de Machico. O primeiro,
dirigido pelo maestro Nélio Martins, primou pelo exímio culto da afinação de
vozes e pela versatilidade programática, desde Lopes Graça, Zeca Afonso,
folclore local e nacional, terminando com o soneto de Francisco Álvares de
Nóbrega dedicado “À Pátria do Autor” (Machico) com música do autor destas
linhas e harmonização superiormente criativa do maestro. O segundo, protagonizado pela Banda Municipal
de Machico transformou aquelas paredes em reflexos sonoros de uma apoteose
arrebatadora, transportando-nos até aos confins do “Oregon” e à solene magnitude
dos palácios reais com a magnífica interpretação do famoso “God Save The Queen”.
O final foi uma enorme cascata de luz e som, juntando em delta as duas inspiradoras
torrentes, o Coral e a Banda.
Faço,
agora, eco do segundo andamento desta partitura. Após os merecidos aplausos e a
irradiante intercomunicabilidade entre
espectadores e actores no final de festa, comentava-se: “Mas como é possível
uma Banda como esta, a nossa Banda, ficar marginalizada o ano inteiro, proscrita de todas as efemérides programadas, a nível religioso, no
centro de Machico”?
Reservo
um parágrafo para informar quem não
saiba que já lá vão três anos consecutivos
que a centenária banda de Machico, fundada em 1896, convidada de honra para a
saudação ao rei D. Carlos I à Madeira, em 15 de julho de 1899 --- a nossa banda,
de tantos e nobres pergaminhos, está
proibida de actuar nas festas religiosas da jurisdição da igreja matriz da
cidade de Machico!!!
Birras
mesquinhas de âmbito estritamente pessoal levaram o responsável eclesiástico a
provocar semelhante escândalo, ostensivamente manifesto diante de toda a
população: no adro e nas procissões vemos desfilar bandas estranhas e a centenária banda de Machico exilada na sua
própria terra. À primeira vista, poderia interpretar-se o caso como uma
insignificante questiúncula paroquial.
Mas não. Configura uma anacrónica ordem de exclusão, acintosa e vingativa,
imprópria de qualquer sociedade civilizada, muito menos de uma agremiação
religiosa! Constituiu um espectáculo insustentável, humilhante para todos nós,
ter visto há dois anos, no cortejo
processional, os nossos músicos correctamente uniformizados desfilando, em
silêncio, atrás de uma outra banda
convidada com o único objectivo de enxovalhar os nossos!
Como
natural e residente em Machico, que em 77 anos de vida nunca testemunhou semelhante
ditadura inquisitorial, não me contive que não escrevesse ao senhor bispo
António José Cavaco Carrilho. Por não ter recebido qualquer resposta, confrontei-o
pessoalmente no encerramento de uma Semana Bíblica em Santa Clara: “Então leu a
minha carta?”…”Mas é essa mania que as pessoas têm que o bispo tem de responder por tudo”. “Mas o
senhor é que é o responsável pela diocese e, consequentemente, por este
escândalo”. Palavras perdidas. Até hoje!
Fosse
o presidente do município, fosse o presidente do governo regional, fosse o
Primeiro Ministro que se atrevessem a “condenar” assim publicamente uma
associação local, Escola de Artes e Civismo, prestadora dos mais nobres serviços há mais de
cem anos --- e isto já estaria completamente sanado e resolvido pelo protesto
da população!... Os homens da Igreja estarão nos altares a pedir preces ao povo
para que Israel se entenda com a Palestina, para que o Estado Islâmico acabe a guerra contra
os cristãos sírios de El-Assad, se calhar estarão a rezar para que António Costa
se una a Passos Coelho para um governo
estável --- e não dão um passo para
reconciliar a igreja com os seus próprios paroquianos, não mexem um dedo para unir a Casa de Deus com
a “divina arte” nascida no seu próprio
seio. Sórdida hipocrisia! Até quando vai suportá-la Machico?
Aos
meus amigos que nada têm a ver com esta mísera situação, as minhas desculpas
pelo incómodo. Limito-me a repetir a canção apelativa: “Vimos, ouvimos e lemos,
Não podemos ignorar”! Foi por isso que hoje deixei-me ficar por este vale,
cheio risco e de beleza.
Para
fechar estas linhas --- que não o problema em causa --- saúdo as restantes paróquias
de Machico que abraçam festivamente a Banda Municipal e rememoro o pensamento
de alguns teólogos: a Igreja institucional é, paradoxalmente,
uma organização anti-democrática. Aqui e agora. Esta
hierarquia, autocrática e exclusiva, está nos antípodas da Ideia e da Acção do Papa
Francisco, o pregoeiro da reconciliação, o incansável apóstolo da Inclusão!
Para conforto meu e de milhares de
conterrâneos, esperamos ver o “Dia de Natal” da Igreja em que a nossa Banda rompa
os muros da velha
Inquisição local e renasça nas praças e nas ruas, repondo o pleno
musical, belo e triunfal, em todo o vale de Machico.
Que
o Protesto se transforme em Apoteose!
19.Out.15
Martins Júnior
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