Não
sei por onde escolha --- é o que me diz a mão com que escrevo. De entre as
rajadas de vento que passam vou ficar com aquela que, ao menos pelo visual
majestoso, marcou o início da semana: o Sínodo da Família em Roma. Muitos
abanões espadanaram por esse mundo fora. Para uns, foi a ameaça de um “cisma
prático”. Para outros foi a derrota do
Papa Francisco. Bento Domingos interrogava-se,
por duas vezes consecutivas no jornal Público; “Sínodo das Famílias ou Sínodo dos Bispos”? E para o grande auditório do mundo global,
imagino eu, aquilo foi mais uma não
notícia e, se o foi, não passou de um episódio das clássicas novelas romanas.
Mas
o caso foi muito sério. Não pelos cenários, mas pelos bastidores. Não pelo
guarda-fato dos figurantes, mas pelo dentro da peça representada. Não pelo que
se disse e aprovou, mas pelo que se não disse e obliterou. Concretamente: é
verdade que os debates incidiram sobre questões fracturantes, endurecidas e
fossilizadas de séculos --- a família, o casamento e seus derivados --- e por
isso nunca daí poderiam esperar-se consensos. Para dourar a pílula, os 270
bispos e cardeais convidaram 18 casais e
algumas mulheres. Esperava-se que estes últimos, considerados legítimos
representantes dos verdadeiros destinatários do Sínodo, (as famílias) fossem
ponderadamente ouvidos nas assembleias e dali saíssem conclusões mais amplas
para o mundo exterior, abrindo mentes e
corações sensíveis aos problemas actuais, realidades novas onde está mergulhada
a instituição familiar, fruto do inevitável processo histórico.
Mas
não. Prevaleceram os fósseis, as teses dogmáticas, o imobilismo ou, mais
precisamente, as almofadas bolorentas em
que dormitaram os velhos cardeais, solteirões oficiais à força, que durante as
reuniões só acordavam sobressaltados quando alguém desafinava do coro dos
anciãos, como nas tragédias gregas. “Uma Igreja moribunda, ligada às máquinas”, escreveu no seu blog o meu amigo
Padre José Luis Rodrigues. Na mesma linha contestatária, conta a historiadora Lucetta
Scaraffia, 67 anos, convidada a participar no Sínodo, ela mesma responsável do
suplemento feminino do jornal vaticano L’Osservatore
Romano: “Quantas vezes tive que reprimir a impaciência rebelde que me assaltava, ao longo
dessas três semanas…Mas o que mais me chocou foi ver a ignorância total dos
cardeais quanto à condição feminina, a sua forma de tratar as mulheres como sendo inferiores, da mesma
forma como tratavam as freiras que,
quase sempre, lhes servem de criadas domésticas”. (Le Monde, edição de hoje).
Para
quem segue com alguma atenção esta metamorfose que se opera no Vaticano,
seja-me permitido transmitir a leitura holística que faço do Sínodo. Ele inscreve-se naquela dinâmica que
o Papa Francisco pretende instaurar, ou seja, não uma Igreja impositiva, mas uma Igreja propositiva
e participativa. São os cristãos que
devem construir a sua Igreja, como Povo de um Cristo permanentemente
actualizado e aberto. Poderíamos dizer, se não fora a corruptela do termo, uma
Igreja Democrática. Era assim nos primórdios fundacionistas do cristianismo, até na indicação dos seus
próprios bispos. Depois, tudo se foi degradando, passou o povo cristão à
condição de servo, humilde, obediente, proibido de pensar e até de ler a Bíblia, enfim, uma ditadura sacralizada
de liturgias e sanções canónicas, banais caprichos de classe que os homens da religião transformavam em
mandamentos divinos.
E
agora estamos nisto. O Papa Francisco --- dificilmente teremos outro igual ---
bem se esforça para que sejam as bases, os cristãos a pronunciarem-se sobre
aquilo que à sua Igreja diz respeito, mas em vão. Já aqui transcrevi o
pensamento de um reconhecido teólogo: “Enquanto os cristãos continuarem à espera de um exclusivo líder carismático, a Igreja perderá a sua vitalidade, a sua identidade essencial”. Deve ser o maior
desgosto deste Grande Reformador: pensar que, depois da sua morte, tudo fique
na mesma inércia e volte a Igreja ao armário dos esqueletos, manipulada
e contorcida por gente vestida de vermelho e enegrecida de ideia ou, como
dizia, o Mestre: “sepulcros caiados de branco
por fora, mas cheios de ossadas por dentro”.
É
este um assunto inesgotável, pleno de esperança para quem sonha, mas causa
perdida à nascença para a maior parte dos cristãos. Porque se demitem do seu
mandato, porque lhes é mais cómodo rezar que pensar. Batemo-nos pelas nossas
capelas futebolísticas e partidárias e damos de barato o templo da nossa
crença. Ninguém espere que a seiva
criadora venha de cima, dos paços episcopais, das mitras-altos capuzes de
carnaval ou das colunatas do Vaticano. É do chão, das raízes que emana a
produção renovadora. Para debelar o fascismo dos anos trinta foram precisas
décadas de luta. A este propósito, ocorre-me
aquela resposta que um simpático clérigo portuense, então secretário do,
agora, bispo do Funchal, me deu sobre a
inércia diocesana em resolver o caso Ribeira Seca: “Sabe, amigo, a Igreja é uma
instituição que já tem dois mil anos”.
Percebi-lhe a ironia, em jeito de crítica ao que por aqui acontece.
A
solução é o que se vê, a “debandada”, como dizia o Papa Francisco aos bispos
portugueses na recente visita a Roma. Tenho para mim que a Igreja institucional
não passa de mais um adereço da etiqueta social. Quanto mais opulenta e
magnificente mais servirá para igualizar-se aos “príncipes deste mundo”
e defendê-los nas suas refregas (como fez ontem o cardeal Patriarca de Lisboa,
a propósito de Cavaco Silva) e, em ricochete, para menorizar os crédulos dos
seus rituais, melhor ainda, citando Lucetta Sacaraffia, trata-los com tratam as
freiras, criadas domésticas.
Se
não houver cristãos esclarecidos e actuantes, o Papa Francisco perderá sempre,
por mais sínodos e conclaves que houver. Ele precisa de nós.
Também
aqui, a Hora é Nossa!
29.Out.15
Martins Júnior
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