Foi
com um uma pitada de humor que ouvi o comentário do jornalista de serviço à
campanha da coligação --- “Passos Coelho conta agora com a ajuda divina” --- e
que o interiorizara ao emocionar-se com aquela velhinha que lhe confidenciava “Vai
ganhar, com a ajuda de Deus Nosso Senhor”.
Era o último tiro de uma campanha feita
à flor da pele, sem programa definido, e ao compasso daquilo que o principal
concorrente ia esclarecendo sobre um compromisso assumido e contabilizado no programa
do seu partido, previamente anunciado e debatido. Chamar
entidades extra-terrestres para uma
disputa entre mortais, não sendo honesto, passa as raias do ridículo. Deus não se mete
nas lutas dos homens.
No entanto, o episódio traz à colação uma
realidade que, mais aberta ou mais sub-repticiamente, entra nesta “faena” cíclica:
a Igreja. Acontece sobretudo nos meios rurais, de fraco aprofundamento
cultural. E não são precisas sondagens para saber-se quanto a influência
religiosa, por acção ou omissão, determina a direcção das vontades, exactamente
no acto de votar. E surge a pergunta:
Deverá ou não a Igreja intrometer-se nestas batalhas campais, ser-lhe-á curial
terçar armas --- tomar partido --- a
favor ou contra um dos dois ou mais contendedores? Para uma vaga comum de
analistas, a resposta será não. Portanto, a Igreja ou os seus membros não devem
pronunciar-se sobre opções de governação. É a linha da omissão. Outros há que
advogam o seu contrário, argumentando com uma questão mais simplista: se os
sindicatos e patrões, banqueiros e proletários,
intelectuais e operários entram
nisto, por que não há-de a Igreja e seus acólitos usarem do mesmo direito? Vai neste segundo sentido, a
atitude corajosa do bispo emérito das Forças Armadas, Januário Torgal Ferreira,
em recente e patriótica entrevista a um jornal diário.
Mas
há quem discorde. Em que ficamos, então?
O
assunto é tão vasto, levar-nos-ia tão longe, mas permita-se-me sintetizar uma
saída deste intrincado labirinto de catacumbas sem fim. Primeiro que tudo,
interroguemo-nos: de que Igreja estamos a falar? Da Instituição milenar, neste caso,
vaticana --- ou de outra Igreja herdeira e multiplicadora da energia motriz que
saíu, originária e viçosa, do seu fundador J:Cristo?
No
caso da Instituição, ela apresenta-se, sem ambiguidades nem reticências: é um reino, talhado à imagem do Império
Romano, a partir de Constantino Magno, no ano 313 d.C., com uma hierarquia
similar à estrutura militarizada de qualquer estado soberano, com títulos
nobiliárquicos, cânones decalcados do Direito Romano, com tribunais próprios e embaixadores,
eufemisticamente chamados “núncios apostólicos”, e até com um opulento banco privado, onde chegam a camuflar “offshores” de lavagem de dinheiro. Aqui
chegados, é por demais evidente, imperativo mesmo, que a Igreja se abstenha de
criar conflitos, manifestamente prejudiciais à sua estratégia diplomática, isto
é, a de ficar bem com todos, prioritariamente com os poderes instituídos, ou
seja, com os poderosos.
Mas
há a outra Igreja, a que não tem palácios nem títulos, não conhece as
passadeiras vermelhas dos monarcas, não se reveste da púrpura principesca,,
pelo contrário, traja por vezes andrajosamente e anda com os “pecadores e
publicanos”, como o seu Mestre, com os atirados para a valeta das periferias,
com os que “não têm vez nem voz” --- não para mantê-los nos mesmos ghettos, mas trazê-los à ribalta da humanidade
e restituir-lhes a túnica estatutária da sua dignidade original, igualitária,
solidária. O horizonte desta Igreja não é um trono, mas um cadafalso; não são
as condecorações, mas os insultos; não são as promoções mas as prisões. “Não podemos
deixar de falar”, ripostaram Pedro e João diante dos juízes do Sinédrio, depois
de serem sujeitos à humilhante tortura das chicotadas.
E agora, quid júris? Que faremos
desta Igreja anti-institucional? Como hão-de posicionar-se os seus membros? Acomodados, acobardados, mudos e surdos perante
os abusos do poder, das ambições coligadas, as falácias eleitorais, os cortes
nas pensões, as emigrações forçadas, as fomes impostas, enfim, os atentados contra
o corpo e contra o espírito?!... Aqui, chamo o citado bispo Torgal Ferreira
para abraçá-lo, chamo o Padre António Vieira, o Padre Alípio de Freitas, o
bispo Helder da Câmara, o bispo do Porto, António Ferreira Gomes (expulso de
Portugal por Salazar), os madeirenses Padres Tavares e José Luis Rodrigues, o
bispo Óscar Romero, da Nicarágua, assassinado em pleno altar por tomar a defesa
dos camponeses oprimidos, enfim, toda uma legião de intrépidos lutadores, gente
saudável, dinâmica, subindo a encosta dolorosa de outros calvários redentores
da história.
É com este J:Cristo que conta Passos Coelho
para ganhar as eleições ou é com o outro
“Nosso Senhor”, da velhinha crédula na
Igreja-Império que lhe ensinaram? Com a
Igreja dupla, farisaica, que não suja as mãos na lama, que deixa morrer a
vítima ensanguentada, à beira do caminho e passa adiante. É desta Igreja que os
poderosos gostam e adoram, porque é dela que mais precisam. Tal como a da
Madeira que, desde há 40 anos, tem servido, não apenas de bordão ou de
almofada, mas de sórdida cama onde o governo se tem deitado e onde procriou a
ninhada de filhotes que hoje nos
comandam!
É à outra parada de “toca-a-marchar”
que solidariamente me apresento. Não como militante de campanha --- as forças
em campo que as façam --- mas para apurar o meu olhar de cidadania e colaborar
numa terra em que todos temos o direito de viver, sorrir e amar. Também para
derrubar essa blasfémia, seraficamente aceite pelo falsificador de promessas.
Não chamem Deus onde Ele não deve ser chamado. Lutar, sim. Inconformar-se, sempre. A este propósito, penso
muito no Livro do Êxodo, a Suprema Divindade
a dizer: “Os clamores do meu Povo esmagado
no Egipto chegaram aos meus ouvidos”.
Mas não desceu à mansão do faraó, para destroná-lo. Limitou-se a intimar
Moisés: “Tu, Meu servo, vai depressa, te
ordeno, vai lá libertar o Meu Povo”.
Com o mesmo humor inicial, lembro aqui
a traição de Maradona que, numa pirueta ilegal, marcou o golo da vitória com a
mesma mão a que chamou “mãozinha de Deus”. Por favor, senhor candidato, cuspa
para fora essa infâmia de contar com a “ajuda divina” para ganhar eleições! Qualquer
que seja o resultado.
1.Out.2015
Martins Júnior
Agradecimento – A todas as amigos e
amigos que me acompanharam ao longo de um ano, no SENSO&CONSENSO. Iniciei os “Dias Ímpares”, precisamente, em 1
de Outubro de 2014. Ininterruptamente, até hoje. É bom e é saudável conversar,
em final de dia, no convés silencioso deste navio-écrã, chamado Blog.
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