Irresistível e
necessário revisitar Pessoa, a síntese de todas as fulgurações que emanam da
infinita galáxia da história dos homens e das coisas:
Aqui
ao leme sou mais do que eu
Sou
um Povo que quer o mar que é teu
De
Ulisses ao Gama, de Moisés ao Cristo, de Joana d’Arc a Gandhi
e Luther King. E de todos a Luaty Beirão! A causa de um só homem torna-se o íman de todo um Povo. A sua luta
atravessa todas as latitudes da história
humana e faz do planeta um inteiro e único campo de batalha. Em Luaty Beirão
mora uma legião, cujo clamor --- ora clandestino e abafado, ora ostensivamente
manifesto --- faz aproximar o tsunami perante o qual as ditaduras terão de vergar-se,
a curto ou a longo prazo. Tal como a fatídica noite do fascismo em Portugal
amordaçou, deportou e esquartejou centenas, milhares de resistentes anónimos,
assim também todos os que têm pago (e muitos são, exemplar o do jornalista
Rafael Marques) com a prisão e a própria
vida o posicionamento corajoso contra um neo-colonialismo, mudado de cor,
politicamente identificado com a violência doméstica entre irmãos da mesma
etnia, todos eles “fortalecem mais a independência de Angola do que o regime de
José Eduardo dos Santos em 36 anos de regime”, escreve Alexandra Lucas Coelho.
E acrescenta: “O que Luaty moveu em muitos milhares de pessoas é irreversível”.
A greve de fome de Luaty, em 36 dias, ultrapassou até os sucessivos jejuns de Gandhi,
entre 1914 e 1948, sendo de 21 dias o mais prolongado, em protesto contra o
colonialismo britânico e a supremacia dos brâmanes. Mas deixou raízes que se
abriram em flores e frutos historicamente pujantes.
Não
vou reimprimir aqui a eloquente soma de apoios que, em África e em Portugal,
têm surgido em prol da causa heroicamente propugnada por Liaty Beirão e seus
companheiros. Não resisto, porém, a traçar em breve síntese o cenário sóciopolítico
de uma África, onde são frequentes e sangrentas as investidas do poder contra
quem se lhe opõe, as quais transformam
os imensos territórios desse continente em sudários de sangue .e horror,
entre abusos inomináveis e guerras civis, mais devastadoras que as guerras
coloniais. Será talvez o inevitável percurso de séculos da escravatura em
direcção à conquista da autodeterminação e da independência. Mas eu que, mesmo
metido forçadamente na guerrilha entre portugueses europeus e portugueses
africanos, sempre aspirei no mais íntimo de mim mesmo e em atitudes concretas
ao respeito e à independência desses povos, sou obrigado a reconhecer, com
mágoa e revolta, que os africanos, uma vez no poder, herdaram do branco o pior
que o branco tinha: a prepotência, a
ganância do dinheiro, a desumanidade do
“dente por dente, olho por olho”, enfim, o regresso às lutas tribais de outrora.
Correndo o risco de desagradar aos poderes instituídos, manda-me a consciência
atestar o que, de forma directa, observei no pós-independência. Temo que se
esteja perante um estranho fenómeno de auto-racismo.
Falei
na luta entre tribos. Porque as vi com os meus próprios olhos. E aí esteja talvez a explicação de
determinados abusos do poder. É que muitos anos, muitas décadas faltarão ainda
para que as diversas etnias africanas interiorizem o sentido de nacionalidade,
naquele conceito de unidade de um povo sob a mesma idiossincrasia e a mesma
bandeira. É este o parecer unânime dos sociólogos e antropólogos que se debruçam
sobre a realidade africana, como refere o excelente trabalho de investigação de
Joana Gorjão Henriques. Cito, por todos, Elias Isaac, nascido no Lobito e
director da ONG “Open Society Iniciative
of Southern África, situada em Luanda: “Houve independência, mas não
descolonização das mentes”. Paulo Faria,
cientista político, autor de uma notável análise sobre o mesmo tema, completa
assim o pensamento: “Angola é um mosaico de vários grupos étnicos e matrizes
linguísticas. Cada grupo tem a sua língua e estes grupos vão construir a sua
identidade etnopolítica”. E continua: “A Angola pós-1975 vai ser o produto
disso e uma das grandes bandeiras foi vender a ideia de “um só povo, uma só
nação”, fazendo um corte com uma Angola que tem este mosaico multiétnico e
racial”.
Sobre
estas milenares placas tectónicas, tentaram construir uma generalizada independência dos vários países africanos. Puro engano. As
movimentações, de dentro e de fora, emergem de tal forma que o poder
concentracionário tem de defender-se e arregimentar-se até ao último
cartuxo, afogando de imediato e por
todos os meios ao seu alcance quaisquer tentativas de desestabilização do
“império deles”. Em cada esquina, em cada livro vêem um conspirador. E assim se
formam as ditaduras, abertas ou disfarçadas. Nós, madeirenses, temos no
minúsculo território civilizado da ilha uma amostragem desses comportamentos
autocráticos, quando, a pretexto de autonomia, mantivemos no poder um homem que,
orgulhosamente só, se ufanava de estar no poder mais tempo que Salazar e, pelos
vistos, mais que os 36 anos do presidente angolano…
Mil
vezes dobrada luta a de Luaty Beirão e seus companheiros de cela! Estamos com
eles. E saudamos o fim da greve de fome. É imperioso que ele se reerga e avance
decidido como bandeirante de uma causa que nos toca a todos. As ditaduras
islâmicas e o dramático cortejo de refugiados que chegam à Europa aí estão para
demonstrar que é a montante que se ganha a batalha pela liberdade. e pela universalidade
dos direitos humanos neste globo que é cada vez mais aldeia. Sublime, porém, é a carta que Nuno Álvaro
Dala, um dos 15 prisioneiros escreveu em nome de todos e que a citada jornalista
trouxe a público: “Não odiamos o Presidente da República nem aqueles que
executaram a trama urdida contra nós. O perdão é o melhor caminho… Pedimos a
todos os angolanos de bem que perdoem a essa gente”!
Em
homenagem aos resistentes aponho idêntica mensagem dessoutro prisioneiro
lutador pela liberdade, o nosso, muito nosso poeta de Machico, Francisco
Álvares de Nóbrega, num dos seus
sonetos:
“Das
almas grandes a nobreza é esta”.
É na grandeza de alma de Luaty Beirão
e de todos os “Luaty’s” do mundo inteiro que cada um de nós, à semelhança do “homem do leme” de Fernando
Pessoa, deveria bradar energicamente no rosto de todos os ditadores: “Aqui na
cadeia ou no exílio, aqui na ilha ou mais além, sou mais do que eu. Sou um Povo
que quer o reino que dizes ser teu, mas que
é nosso e será sempre nosso”!
3.Nov.15
Martins Júnior
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