quarta-feira, 4 de novembro de 2015

NO CORAÇÃO DE LUATY BEIRÃO BATE O NOSSO CORAÇÃO!


         Irresistível e necessário revisitar Pessoa, a síntese de todas as fulgurações que emanam da infinita galáxia da história dos homens e das coisas:

                            Aqui ao leme sou mais do que eu
                            Sou um Povo que quer o mar que é teu

         De Ulisses ao Gama, de Moisés ao Cristo, de Joana d’Arc  a  Gandhi e Luther King. E de todos a Luaty Beirão! A causa de um só homem  torna-se o íman de todo um Povo. A sua luta atravessa  todas as latitudes da história humana e faz do planeta um inteiro e único campo de batalha. Em Luaty Beirão mora uma legião, cujo clamor --- ora clandestino e abafado, ora ostensivamente manifesto --- faz aproximar o tsunami perante o qual as ditaduras terão de vergar-se, a curto ou a longo prazo. Tal como a fatídica noite do fascismo em Portugal amordaçou, deportou e esquartejou centenas, milhares de resistentes anónimos, assim também todos os que têm pago (e muitos são, exemplar o do jornalista Rafael Marques) com  a prisão e a própria vida o posicionamento corajoso contra um neo-colonialismo, mudado de cor, politicamente identificado com a violência doméstica entre irmãos da mesma etnia, todos eles “fortalecem mais a independência de Angola do que o regime de José Eduardo dos Santos em 36 anos de regime”, escreve Alexandra Lucas Coelho. E acrescenta: “O que Luaty moveu em muitos milhares de pessoas é irreversível”. A greve de fome de Luaty, em 36 dias,  ultrapassou até os sucessivos jejuns de Gandhi, entre 1914 e 1948, sendo de 21 dias o mais prolongado, em protesto contra o colonialismo britânico e a supremacia dos brâmanes. Mas deixou raízes que se abriram em flores e frutos historicamente pujantes.
         Não vou reimprimir aqui a eloquente soma de apoios que, em África e em Portugal, têm surgido em prol da causa heroicamente propugnada por Liaty Beirão e seus companheiros. Não resisto, porém, a traçar em breve síntese o cenário sóciopolítico de uma África, onde são frequentes e sangrentas as investidas do poder contra quem se lhe opõe, as quais transformam  os imensos territórios desse continente em sudários de sangue .e horror, entre abusos inomináveis e guerras civis, mais devastadoras que as guerras coloniais. Será talvez o inevitável percurso de séculos da escravatura em direcção à conquista da autodeterminação e da independência. Mas eu que, mesmo metido forçadamente na guerrilha entre portugueses europeus e portugueses africanos, sempre aspirei no mais íntimo de mim mesmo e em atitudes concretas ao respeito e à independência desses povos, sou obrigado a reconhecer, com mágoa e revolta, que os africanos, uma vez no poder, herdaram do branco o pior que o branco tinha: a prepotência,  a ganância do dinheiro, a desumanidade  do “dente por dente, olho por olho”, enfim, o regresso às lutas tribais de outrora. Correndo o risco de desagradar aos poderes instituídos, manda-me a consciência atestar o que, de forma directa, observei no pós-independência. Temo que se esteja perante um estranho fenómeno de auto-racismo.
         Falei na luta entre tribos. Porque as vi com os meus próprios olhos.  E aí esteja talvez a explicação de determinados abusos do poder. É que muitos anos, muitas décadas faltarão ainda para que as diversas etnias africanas interiorizem o sentido de nacionalidade, naquele conceito de unidade de um povo sob a mesma idiossincrasia e a mesma bandeira. É este o parecer unânime dos sociólogos e antropólogos que se debruçam sobre a realidade africana, como refere o excelente trabalho de investigação de Joana Gorjão Henriques. Cito, por todos, Elias Isaac, nascido no Lobito e director  da ONG “Open Society Iniciative of Southern África, situada em Luanda: “Houve independência, mas não descolonização das mentes”.  Paulo Faria, cientista político, autor de uma notável análise sobre o mesmo tema, completa assim o pensamento: “Angola é um mosaico de vários grupos étnicos e matrizes linguísticas. Cada grupo tem a sua língua e estes grupos vão construir a sua identidade etnopolítica”. E continua: “A Angola pós-1975 vai ser o produto disso e uma das grandes bandeiras foi vender a ideia de “um só povo, uma só nação”, fazendo um corte com uma Angola que tem este mosaico multiétnico e racial”.
         Sobre estas milenares placas tectónicas, tentaram construir uma  generalizada independência  dos vários países africanos. Puro engano. As movimentações, de dentro e de fora, emergem de tal forma que o poder concentracionário tem de defender-se e arregimentar-se até ao último cartuxo,  afogando de imediato e por todos os meios ao seu alcance quaisquer tentativas de desestabilização do “império deles”. Em cada esquina, em cada livro vêem um conspirador. E assim se formam as ditaduras, abertas ou disfarçadas. Nós, madeirenses, temos no minúsculo território civilizado da ilha uma amostragem desses comportamentos autocráticos, quando, a pretexto de autonomia, mantivemos no poder um homem que, orgulhosamente só, se ufanava de estar no poder mais tempo que Salazar e, pelos vistos, mais que os 36 anos do presidente angolano…
         Mil vezes dobrada luta a de Luaty Beirão e seus companheiros de cela! Estamos com eles. E saudamos o fim da greve de fome. É imperioso que ele se reerga e avance decidido como bandeirante de uma causa que nos toca a todos. As ditaduras islâmicas e o dramático cortejo de refugiados que chegam à Europa aí estão para demonstrar que é a montante que se ganha a batalha pela liberdade. e pela universalidade dos direitos humanos neste globo que é cada vez mais aldeia.  Sublime, porém, é a carta que Nuno Álvaro Dala, um dos 15 prisioneiros escreveu em nome de todos e que a citada jornalista trouxe a público: “Não odiamos o Presidente da República nem aqueles que executaram a trama urdida contra nós. O perdão é o melhor caminho… Pedimos a todos os angolanos de bem que perdoem a essa gente”!
         Em homenagem aos resistentes aponho idêntica mensagem dessoutro prisioneiro lutador pela liberdade, o nosso, muito nosso poeta de Machico, Francisco Álvares de Nóbrega,  num dos seus sonetos:
                  
                            “Das almas grandes a nobreza é esta”.
          
         É na grandeza de alma de Luaty Beirão e de todos os “Luaty’s” do mundo inteiro que cada um de nós,  à semelhança do “homem do leme” de Fernando Pessoa, deveria bradar energicamente no rosto de todos os ditadores: “Aqui na cadeia ou no exílio, aqui na ilha ou mais além, sou mais do que eu. Sou um Povo que quer o reino que dizes ser teu, mas que  é  nosso e será sempre nosso”!

3.Nov.15
Martins Júnior

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