Até ao dia 4 de Outubro, o futuro de Portugal estava directamente nas mãos do Povo. Após o 4 de Outubro, o poder passou para as mãos dos representantes do Povo soberano: a Assembleia da República. Enquanto se não perceber que a soberania originária popular outorgou procuração à soberania delegada nos deputados (o que alguns pretendem acintosamente baralhar) nunca se entenderá que estamos num mundo novo de oportunidades inimagináveis, capazes de alterar a visão estática da política até agora assentada em moldes imutáveis.
Para que os portugueses nunca vislumbrassem esta nova descoberta de estar na política, bem se esforçaram os velhos poderes em semear ao vento que passa os fantasmas do medo mais primário e pré-histórico: se nada for como dantes, se não for como nós, o mundo será um caos, não há alternativa, teremos um Portugal suicidário. Apesar de todo o anunciado terror, a soberania originária popular disse que não queria mais o “antes”, repudiou claramente o governo dos semeadores de fantasmas. É esta, entre muitas, a leitura global da votação do 4 de Outubro. A coligação pode ter a presunção, mas não tem o direito, de validar apenas os votos concordantes com a sua governação. Os que votaram contra essa governação são tão válidos e imperativos como os que votaram a favor. Tudo apurado, os que votaram “contra” são a maioria. Se essa maioria soberana, espelhada nos partidos da oposição, quiser interpretar (como é seu dever) o sentido último da votação popular tem de ser-lhe coerente e concluir: temos de dar as mãos e apear a coligação de Direita, sob pena de traição à vontade dos nossos constituintes, o Povo Português. É aqui que faz todo o sentido o pensamento de Toncqueville: “os deputados são representantes do Povo soberano, mas não são representantes soberanos da vontade do Povo”.
Abro um parágrafo para insistir que a intencionalidade maior e conclusiva dos eleitores foi exprimir, pelo voto, aquilo que por tantas e incisivas manifestações em frente à Casa dos Deputados denunciaram assumidamente: derrubar as políticas duras e cruas deste governo. E não há mais volta a dar. É de um requinte mórbido o escrúpulo interpretativo dos insensíveis PSD/CDS que, com as mesmas unhas com que sangraram o Povo, procuram agora com pinças esterilizadas sarar-lhe as feridas, alegando que “quem votou PS não o fez para este juntar-se às outras forças de Esquerda”, como balbuciou o risonho Durão Barrosos, logo ele, em quem o Povo votou para Primeiro Ministro e quando viu a primeira aberta fugiu para a Europa, deixando ainda mais “de tanga” o país nas mãos do “voluntário-à-força” Santana Lopes.
Precisamente para serem fiéis à procuração que lhes passou o Povo soberano --- afastar a coligação e as suas políticas --- tanto se têm esforçado PS/BE/PCP em sucessivas reuniões de trabalho. Eles sabem que, maior que o eventual acesso de António Costa a Primeiro Ministro (como repetida e venenosamente tem insinuado a coligação) maior que essa episódica mas inevitável situação, está a vontade de cumprir o superior interesse do Povo Português. Daí, o medo (mas um outro, de sinal positivo) o medo de errar. Chegar ao alto do monte, por caminhos diferentes à partida, eis o grande esforço que a “maioria absoluta” dos eleitores pôs aos ombros dos seus legítimos representantes. Aproximar diferenças, limar arestas, adiar ou distribuir faseadamente os projectos --- é esta a hercúlea tarefa dos responsáveis pelo futuro de Portugal. A Direita que nem apresentou programa eleitoral anda tresloucada por saber os termos do acordo. A Esquerda responsável, porém, tem medo de errar porque tem palavra e honra e não quer seguir o atrevido despudor de Passos Coelho que na campanha eleitoral de 2011 prometeu o “céu” aos portugueses e, logo a seguir, criou-lhes o inferno da mais vil austeridade.
Entre o medo de errar e os lucros adquiridos! Eis o drama e a glória das forças de Esquerda. Imagino os labirintos intra-partidários em que se debatem dirigentes e correlegionários, dentro da própria casa, para acautelar e, se possível, ampliar interesses, lugares, influências e até ideais e linhas de acção: uns quererão assegurar o posto e altear a bandeira do partido; outros, de mãos livres e alma inteira, querem ir mais além e demonstrar, pelo menos em quatro anos, que governar não é monopólio da Direita, pelo contrário, governar para o Povo é apanágio e privilégio da Esquerda.
Quem me dera colocar esta toalha sobre a mesa das conversações ou no palco dos plenários de militantes. Para esconjurar os “zombies” da Direita que ameaçam com o fantasma da Europa e respectivos tratados, E em nome do Povo proclamar esta evidência: já que os deputados e governos da coligação foram procuradores e advogados de Bruxelas em Portugal, doravante os deputados e governantes da Esquerda Unida serão os fiéis representantes e legítimos defensores do Povo Português na Europa.
Seria mais cómodo segurar a cadeira e ficar na oposição em perpétua vocação de protesto. Ir à luta, assumir riscos, inclusive o de pisar inertes linhas vermelhas --- isso é que custa. Mas isso “é o que falta”, aqui e agora. Com esta certeza, porém, no horizonte final:
Ganhando, ganhamos todos. Perdendo, perdemos todos.
5.Nov.15
Martins Júnior
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