Não
sou de chorar mágoas nem cantar loas ao viajante na Barca de Caronte. Basta
aceitar da sua mão – e nunca deixar morrer – o facho olímpico com que iluminou
o mundo.
Naquele
navio, onde todos embarcamos, não vi um corpo morto. Vi a partitura latente de
uma vida inteira. Vi todos os andamentos
existenciais que ritmaram oitenta e sete anos, feitos de pautas vibrantes e
pausas cantantes, que só ele as sabia
decifrar. Todos os andamentos… também as áreas da Paixão segundo São João, de Bach. Também as sonatas dolentes de
Chopin e o allegro pizzicato de Mozart. Também os coros retumbantes de Wagner e Verdi. Mas, de todo o oceano
rítmico em que vivia mergulhado, o que permanecia sempre inalterável no rosto
sereno era o Adagio cantabile que nos
deixou por herança, como se todas as agruras e tormentos ficassem submersas nas
funduras abissais.
Um
dia disse-me: “Somos construtores de capelas imperfeitas”. E esclareceu-me: “Capelas
Perfeitas como as do Mosteiro da Batalha… mas Capelas Imperfeitas porque
inacabadas. Outros continuarão a construí-las”.
É
esse o testamento e a chama que nos unem. Quisera eu ter toda a vida e toda a eternidade para ajudar, como ele, o mundo em construção, sabendo bem que de todos os esforços ficará sempre a obra
inacabada. Refazer, com ele, a canção sobre a letra que escrevi, há mais de
cinco décadas:
Grito de paz é o nosso
grito
Marcha
de sol é o nosso passo
Somos
a voz do Infinito
Da cruz, do pão e do
abraço
Para
a Augusta, sua grande musa inspiradora e companheira de ouro, fica o outro tom
da Cidade Nova que o Rufino adaptou a
um “negro-espiritual”, muito antes dos cravos de Abril:
Vem comigo ver as ruas
De uma nova cidade
O Povo já tem pão
O pão da liberdade
Vem ver, oh vem…
As mãos estão vermelhas
De sangue e de alegria
O Povo quis lutar
Nasceu um novo Tempo
Novo
Vem ver o Dia
Irmão, Irmão
Traz a tua fome
Traz as mãos e constrói
a Rua
A cidade, a Cidade Nova
Já é tua.
19
de Julho. Faltam seis meses para o 19 de Janeiro – o dia de mais um ano teu.
Estaremos cá para trazer-te à nossa mesa e, aí sim, cantarmos as tuas Sinfonias
Incompletas… as nossas Capelas Imperfeitas. Que bom saber que as tuas mãos continuam
nos nossos braços e que os nossos dedos germinarão rebentos de futuro.
19.Jul.16
Martins Júnior
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