Normalmente
as cruzes dos epitáfios não dizem mais que
o informe da praxe: “Aqui jaz”. Outras, porém, aos olhos de quem as lê,
ao vivo, brilham como um anúncio luminoso em plena escuridão da noite: “Aqui
vive”!
Foi o caso do Dr. Rufino Silva.
No
preito de gratidão que anteontem deixei aqui
expresso, não coube a longa e sábia
extensão do memorial de outros tempos. Uma delas ficou conhecida pelos “Padres
do Pombal”. Devo dizer quanto me enfada, até à náusea (e por isso a detesto) essa esfarrapada “estirpe” de escribas, subservientes
ao mais forte, que se arrogam o direito de escrever historietas e larachas e a
que chamam “subsídios” para a História da Autonomia ou Democracia na Madeira. Todos eles, os coevos de então, mais não
fizeram senão esconder os factos reais, manipulando-os à sua maneira, para
denegrir quem deu todo o seu talento e o seu corpo às causas nobres.
É
o caso dos “Padres do Pombal”, com que o exemplar-mór da regional boçalidade governativa
encharcou-se de baba vingativa, asquerosa.
Nunca
se contou a eloquente saga desses “Quatro Cavaleiros do Apocalipse” da segunda
metade do século XX na Madeira. Homens de cultura, verticais na sua personalidade de “antes
quebrar que torcer”, numa incondicional entrega à transformação das mentalidades anquilosadas da
ilha, modelos de comportamento cívico e eclesial. Pedagogos e mestres exímios, cada qual na sua área: o
Rufino Silva, formado na Pontifícia Academia de Santa Cecília, em Roma, ensinou
a Madeira a cantar e deixou um inestimável repositório das tradições musicais
religiosas da Região. O João da Cruz cursou Letras na Universidade Clássica de
Lisboa e leccionou literatura no Liceu Nacional do Funchal. O Sidónio Figueira
estudou no Pontifício Ateneu Salesiano de Itália e o Lino Cabral, meu ilustre
conterrâneo, além da Religião e Moral que ministrava no ensino oficial, era o
protótipo do orador sacro que arrastava multidões.
Entre
outras, duas breves mas eloquentes notas características:
A
primeira foi a opção por uma vida comunitária, abnegada e desprendida de toda a
fumaça mundana de prestígio ou lucro vil. Decidiram viver em comunidade, sob o
mesmo tecto, à imagem daquela plêiade de sacerdotes que germinou em França, à
luz do Concílio Vaticano II. Habitavam um modesto prédio na Rua do Pombal,
Funchal.
A
segunda define-se pela inteira generosidade, sobretudo a nível sócio-cultural,
dedicando largo tempo a promover os trabalhadores. Muitas horas, retiradas ao
merecido descanso após as aulas diárias, estão na memória de tantos homens e mulheres
que, em período pós-laboral, completaram
a sua formação académica no CCO, Centro de Cultura Operária. Tudo isto a custo
zero!
Foi
em meados da década de sessenta que os “Padres do Pombal” iniciaram esta, então
estranha, forma de exercer o sacerdócio ao serviço de causas. Se, por um lado,
prestigiou a Igreja, por outro, esta vida nova concitou a malquerença, o ódio
mesmo, dos corifeus do fascismo e, já no pós-25 de Abril, a perseguição
terrorista dos homens de mão da FLAMA separatista e dos respectivos seguidistas
assolapados no governo regional.
A
prova irrefutável deste terrorismo urbano ( de requinte que hoje chamaríamos de
jihadista) foi o macabro atentado de 11 de Novembro de 1975, dia em que, pelas
oito horas da manhã, um forte explosivo rebentou na sala de entrada do prédio
onde habitavam os quatro sacerdotes, causando o pavor de quantos habitavam ou
circulavam naquela rua. Os abutres facínoras estavam saciados do seu ódio
contra quem só fez o bem à Madeira.
Ninguém, senão o Povo, os defendeu. Nem a própria Igreja governada pelo
colaboracionista do regime salazarista, o bispo Francisco Santana. Após o
alvoroço que tal acto produziu, sobretudo no Funchal, muitos foram os curiosos
que lá apareceram e se solidarizaram com os inquilinos da casa. Eu fui um
deles, juntamente com o funcionário
superior das Finanlas, o Sr. Oliveira (pai do falecido Dr. Paquete) o qual
vociferava em altos brados contra o bispo, o católico Jornal da Madeira e
contra a Igreja diocesana, conivente e cobarde com tais acontecimentos.
Deixo aqui o testemunho verídico de há
quarenta e cinquenta anos. Para que os homens não esqueçam. Possivelmente
voltarei ao caso, às suas incidências e consequências, adiantando, desde já, o
ostracismo a que quatro valorosos sacerdotes foram votados pela hierarquia
católica regional, ao ponto de abandonar o sacerdócio e refazer, do nada, a sua vida
civil. Suprema ingratidão dos farisaicos “Homens da Misericórdia”, só
comparável à destruição cultural e social que tais factos produziram nesta
ilha.
No
epitáfio do Rufino Silva e do Lino Cabral que “deixaram de ser vistos”, não
figuram os crepes da morte. Pelo contrário, ali pode ver-se o glorioso anúncio
da Vida, onde se lê: “Aqui mora a flor da Primavera, aquela que foi e continua à tua
espera, para reflorir num Tempo Novo”.
21.Jul.16
Martins Júnior
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