terça-feira, 5 de julho de 2016

O QUARTETO DA NOITE DE SÁBADO


Os quatro violinos adormeceram para sempre no berço da partitura. Mas a melodia prolongou-se por quatro dias e quatro noites, até que os dedos do quarteto doaram às chamas o que restava do seu talento imorredoiro.
Eles aí estão, companheiros dos últimos acordes, quando embarcaram nesse cruzeiro de sábado, 2 de Julho de 2016. Quatro dias e quatro noites esperaram na amurada do cais até à hora em que definitivamente tudo se converteu em cinzas aladas a colorir o planeta.
Caso normal, comum a todos os mortais. E caso estranho o terem “combinado” o mesmo dia da partida! Aqui ficou selada aquela sina que marca a história:  Todos Diferentes e Todos Iguais.
      Diferentes no habitat que lhes coube viver:
         Elie Wiesel, romeno judeu, saído das negras portas dos fornos crematórios de Auschwitz depois de ver o pai espancado até à morte, a mãe e a irmã atirados à câmara da gás, foi marcado aos 15 anos pelas tropas nazis com o nº A-7713, que trouxe toda a vida no braço. Deportado juntamente com a comunidade judaica em 1945, estudou em França e, mais tarde, ensinou nas universidades americanas de New Iork, Yale e Columbia, tendo publicado mais de 40 livros, o maior dos quais intitulado A Noite, relatando os horrores do Holocausto, Foi agraciado com o Prémio Nobel da Paz, em 1986.
         O nosso Camilo de Oliveira, 91 anos,  totalmente diferente, encheu o país de gargalhadas sadias, anti-traumas, libertadoras, nas 47  peças de teatro de revista que marcaram os nossos palcos e que ainda hoje são recordados nas irrepetíveis interpretações do Padre Pimentinha  (na foto),  Lisboa é Coisa Boa (1951), Camilo na Prisão, Camilo Presidente, entre outras. Assente como uma luva, outro dia, senão o sábado,  poderia ter “escolhido” o criador do famoso programa Sába  Dá  Badu, com Ivone Silva  no dueto Agostinho e Agostinha, que tanta saúde física e mental transmitiram aos portugueses.
         Michael Cimino, realizador cinematográfico, 77 anos, vencedor de cinco óscares pela Academia de Hollywood, em 1978, com o filme Viagem ao fundo do Inferno ou  O Caçador,  contra a guerra no Vietnam. Desaires supervenientes, sobretudo após  a realização do  (1980) Heaven’s Gate (A Porta do Paraíso)  soçobrou às mãos de uma crítica implacável.
         Finalmente, Michel Rocard, 85 anos, Primeiro-Ministro francês no mandato 1988-1991, percorreu os mais diversos atalhos da política, conheceu vitórias e derrotas, terminando a carreira como deputado europeu, entre 1994-2009.
         Embora diferentes e distantes uns dos outros,  uma idêntica linha de rumo os conduziu: o espírito combativo, porfiado, diante dos obstáculos. Defensores da verdade íntegra, ( exigência moral na acção política, ideal de Michel Rocard) militantes  dos direitos humanos, (Nenhum homem é ilegal, proclamou Elie Wiesel) nimbados  de uma ambição perfeccionista, (Camilo de Oliveira) inconformados com o politicamente correcto ( Enfant terrible du Nouvel Hollywood, escreve “Le Monde” sobre Cinimo, denunciador  do selvagem capitalismo americano)  --- todos estes homens  marcaram a História.   
         Trago-os hoje, na mesma urna – o mesmo trono - da nossa homenagem, cumprindo o que sobre o Holocausto  afirmou  Elie Wiesel  na aceitação do Nobel da Paz: “Esquecer os mortos é permitir que sejam mortos segunda vez” E acrescenta: “Eu tentei manter a memória viva, tentei opor-me àqueles que preferem esquecer, porque se esquecermos somos culpados, somos cúmplices”.
         Trago-os também, porque muitos outros, homens e mulheres, gente anónima à nossa volta, vivem e sobrevivem da chama que animou os quatro combatentes, os “Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, irmanados em vida e companheiros na hora da partida.
Trago-os, finalmente, porque o que mais falta é continuar a ouvir-se, com o nosso esforço e determinação,  “essa linda, longa melodia imensa”, diria Sebastião da Gama. Até ao dia da Grande Viagem!

05.Jul.16

         Martins Júnior

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